Os últimos dias têm sido um festival de arrogância de homens públicos e brasileiros 100% abastados expondo publicamente seu pedantismo diante de pessoas em suposta posição de desvantagem na escala econômica. O mais recente, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, chamando de “analfabeto” um guarda que cobrou dele o uso da máscara enquanto ele caminhava na orla de Santos, é de cair o queixo. Siqueira rasgou uma multa que recebeu e a jogou em cima do guarda municipal que o abordava. O desembargador ainda ligou para um superior para reforçar a ameaça, como mostram as imagens do vídeo que tomou as redes sociais neste final de semana.
Tornar-se alvo de repúdio de parte dos brasileiros
não faz corar nenhum integrante desse topo da pirâmide, que só alcançou
status por dinheiro, mas são deploráveis em termos de valores.
Alguns
entregam seu apego a uma etiqueta de opressão, descolados de um mundo
que avança em outro sentido. Dias atrás circulou a imagem de um casal
reclamando com um fiscal no Rio que cobrava que fossem embora de um bar
pelas restrições impostas pela pandemia. Quando o fiscal chamou o rapaz
de “cidadão”, a mulher reagiu dizendo: “cidadão não, engenheiro civil”.
Também o secretário executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco
Filho, mostrou sua hostilidade com quem não pode se defender ao dar ao vivo uma bronca gratuita num garçom que entrou sem querer na visão da câmera que filmava a live da qual participava Franco Filho.
Um pouco antes, foi a vez de um empresário no condomínio de luxo Alphaville
apelar em alto e bom som para a baixaria quando foi abordado por um
policial, chamado pela mulher do empresário. “Você é um bosta, você é um
merda de um PM que ganha mil reais por mês. Eu ganho 300.000 por mês.
Eu quero que você se... , seu lixo!”, vociferava ele na frente da mulher
— e da filha. Este, ao menos acabou algemado, e pediu desculpas
publicamente pelo show de horrores que promoveu. Mas estava sendo detido
por violência doméstica. Quem é o lixo aqui?
Essa falsa
superioridade presente em uma parte da elite mata de verdade. É a mesma
que fecha os olhos para a pobreza e a violência policial que executa
negros na periferia, colocando o Brasil como um dos campeões em
crueldade. É a mesma que despreza o filho da empregada sozinho no elevador,
como Sarí Corte Real, mulher do prefeito de Tamandaré. Miguel, filho de
Mirtes que passeava os cachorros de Sarí enquanto a patroa fazia as
unhas, caiu do alto do prédio e morreu.
Não
se pode generalizar a elite brasileira com esses exemplos rastaquera.
Há muita gente no topo da pirâmide querendo verdadeiramente dar sua
contribuição para garantir um país mais decente. Um PIB que se preocupa
com educação dos mais vulneráveis, com o meio ambiente e com o avanço
democrático do Brasil. Que não se prestaria, seguramente, a se tornar
uma caricatura dos “você sabe com quem está falando?” como o
desembargador Siqueira. Mas ainda são poucos os que se erguem com
veemência contra injustiças no país que os enriquece. Neste momento, é
inacreditável que atores globais, assim como a socióloga Neca Setúbal, tenham de interceder junto ao governador João Doria Jr. para que ele receba movimentos sociais negros que querem ser ouvidos para falar da violência policial das periferias em São Paulo que subiu vertiginosamente.
São
poucos os que dão a cara para bater. Num Brasil à flor da pele neste
momento tão trágico como o da pandemia, não faltam aqueles que continuam
repetindo à exaustão a cantilena do liberalismo econômico como meio de
melhorar a vida dos pobres, como sugeriu em entrevista à Folha de S. Paulo Henrique Bredda, da gestora Alaska. Diz Bredda que fica “com o pé atrás” quando ouve falar em desigualdade no Brasil.Faltaram brios também aos empresários mais poderosos do Brasil diante da “boiada” que está passando na Amazônia. Foram fracos em não se posicionar diante dos ataques à floresta nestes últimos tempos. Foi preciso que fundos estrangeiros trilionários ameaçassem retaliar o Brasil para que fossem bater à porta do general Hamilton Mourão com um manifesto contra o desmatamento. Uma carta assinada inclusive pela Vale, cuja atuação em desprezo ao meio ambiente e aos trabalhadores do grupo deixou sequelas profundas em Minas Gerais.
No ano passado, o empresário Blairo Maggi, maior exportador de soja, foi um dos poucos a falar publicamente
e chamar a atenção para o risco que o Brasil corria diante dos
incêndios na Amazônia. Mostrava o perigo para o agronegócio diante da
gestão. “O Brasil tinha subido no muro e passado a perna para descer do
outro lado, agora fomos empurrados de volta e para bem longe do muro.
Não veja como crítica feroz, mas sim como um alerta”, avisou Maggi.
A
lista de desconfortos só cresce. Quanto os bancos se empenharam para
que houvesse crédito a empresas neste momento de pandemia? Dados do IBGE
revelam que somente 12,7% das empresas tiveram acesso ao crédito emergencial do Governo destinado ao pagamento de salários.
O recurso, anunciado em março, estaria disponível através dos bancos.
Falhou o Governo em repassar? Quantas vozes se insurgiram contra esse
quadro? Não por acaso mais de 700.000 empresas já fecharam em definitivo
por causa da pandemia.
A elite brasileira precisa se
envergonhar da sua cumplicidade com um Brasil perverso. Em outros
países, milionários estão fazendo campanha para aumentar os próprios
impostos, contribuindo com movimentos por justiça social. O silêncio dos
que detêm dinheiro e poder permitiu que o país se tornasse pária no
exterior. Nada mais constrangedor do que ter a chance de evoluir, e
calar. Tenham modos, tenham coragem para deixar que o Brasil tenha
orgulho de si mesmo.
conteúdo
Carla Jiménez
El País
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