Toda cautela é pouca na hora de tentar antecipar o inegável impacto econômico do coronavírus: grande parte do que está ocorrendo hoje só será plenamente visível e quantificável no decorrer das semanas ou meses. Os sinais, entretanto, chegam em peso e falam por si só: há algo de grave acontecendo no sempre frágil jogo de equilíbrio em que se move a economia. Apesar da recuperação desta terça-feira, Wall Street perdeu quase um quinto do seu valor em menos de um mês; a migração da renda variável para a renda fixa – a prova mais evidente do temor que paira sobre o mercado – é evidente; o consumo global de petróleo afunda a um ritmo inclusive maior que na Grande Recessão; a saída de capitais dos emergentes se multiplica; e cada vez mais organismos internacionais reconhecem que ainda não dispõem dos elementos de julgamento suficientes para se aventurarem com uma cifra concreta de impacto.
No aspecto sanitário, a epidemia chegou à América Latina duas semanas atrás. Foi através do Brasil, com um homem que voltou infectado de uma viagem à Itália. Desde então, o vírus avançou lentamente,
muito mais que em outras latitudes: o verão austral talvez tenha
ajudado, como também a distância geográfica e as poucas conexões aéreas
com as zonas mais afetadas, e o balanço de casos abaixo de uma centena,
com um só morto, na Argentina. O número de contágios é oito vezes maior
nos EUA e 160 vezes maior na Europa. Mas o dinheiro corre por vias bem
distintas: na mente dos economistas, está gravada a fogo a relação
direta entre menor atividade global, menor consumo de matérias primas e
golpe na linha de flutuação de muitas economias da região. A eterna
dependência dos produtos básicos, sem valor agregado, agrava a exposição
latino-americana a um choque desta espécie.
As primeiras a sofrerem o golpe foram as divisas regionais, algumas das quais já estavam nos ossos: o real brasileiro
e o peso chileno flertavam com seu mínimo histórico bem antes do
coronavírus monopolizar tudo. Só o peso mexicano sustentava a cotação.
Até ontem, quando viveu sua pior jornada em um ano e meio, época em que
as ameaças tarifárias de Donald Trump
eram uma constante pairando no ambiente. Mas além dos sempre voláteis
mercados financeiros – Bolsas, câmbio, renda fixa –, que já antecipam
uma guinada radical no caminho de crescimento global e regional, “há um
impacto claro sobre as exportações e, portanto, sobre o crescimento.
Ainda não vemos contágio para o setor de serviços, com impacto
doméstico, mas o risco está aí, e as autoridades de política econômica
deveriam estar observando-o”, afirma Martín Castellano, chefe de análise
para a América Latina do Instituto de Finanças Internacionais (IIF, na
sigla em inglês).
A estreita relação com a China
nas últimas décadas se transforma em uma faca de duplo fio na balança
comercial de muitos países latino-americanos. Pouco mais de uma década
atrás, quando o bloco ocidental sucumbia à crise financeira, esse gancho
permitiu à região se isolar das consequências da queda dos EUA e
Europa. Hoje, por outro lado, é motivo de alarme: embora a China vá pouco a pouco voltando à normalidade,
“a atividade econômica ficou muito reduzida, com um impacto
significativo”, observa por email Otaviano Canudo, ex-diretor do FMI
para o Hemisfério Ocidental e hoje fellow da Brookings
Institution. Segundo os cálculos da OCDE, um ponto a menos de
crescimento na China implica uma queda em idêntica proporção no
crescimento da região. E a migração da volatilidade para os spreads da dívida pública, como recorda Sebastián Neto, chefe de unidade do organismo para a região, também é muito maior.
Três
das grandes economias regionais – Brasil, Chile e Peru – têm no gigante
asiático o principal destino de seus produtos, e o fantasma de 2015,
quando as matérias primas desabaram e as principais economias
latino-americanas se ressentiram, está na memória. Se nos primeiros dias
os temores se centravam nos minérios de uso industrial – ferro e cobre,
sobretudo –, o que situava as nações andinas como maiores prejudicados,
o recente desabamento do petróleo por uma combinação de menor demanda
(maior baixa trimestral em décadas, superior inclusive à registrada no
auge da Grande Recessão) e descoordenação entre a OPEP e a Rússia, pôs o foco sobre Venezuela, Equador, Colômbia, Brasil e México, grandes produtores regionais. Em questão de dias, o México,
segunda maior economia latino-americana – e um dos países menos
afetados pela epidemia, por sua escassa exposição à China, onde tudo
começou –, passou ao olho do furacão financeiro. Primeiro porque o
desmoronamento do petróleo representa um duro baque para sua já
abaladíssima petroleira estatal Pemex. Segundo porque, à medida que o
vírus se globaliza – ou, melhor dizendo, se ocidentaliza –, suas
consequências econômicas também o fazem.
“Estamos
começando a mudar o enfoque, vendo-o não só como um golpe para a
economia chinesa, mas como algo que vai muito além”, aponta, pedindo
anonimato, o estrategista para a América Latina de uma importante
gestora de recursos. “Nos EUA, por exemplo, vão comprar os mesmos carros
nestas circunstâncias? Temos dúvidas, e isso afeta o México e também o
Brasil, onde dois terços de suas exportações são matérias primas. São
"tempos difíceis” para a região, afirma por telefone. “Estamos vendendo
com as duas mãos e esperando que os números se estabilizem para comprar
com três mãos.” E quando os investidores apertam o botão de pânico, a
história diz claramente que a peça latino-americana do dominó global
costuma ser uma das primeiras a cair: sua exposição à volatilidade é
inclusive maior que a do resto dos emergentes.
Na sopa de
letras que os economistas identificam ao lerem as curvas dos gráficos –
ou seja: L, uma queda da atividade sem recuperação à vista; V, rápido
desabamento, rápida recuperação; U, descida busca, descenso, recuperação
demorada –, Neto aposta na última opção. “Não há dúvidas de que haverá
efeito sobre o crescimento. O período de recuperação já não será de um
trimestre nem um semestre, e sim mais”. O resultado desse coquetel é um
quadro cinza, muito mais sombrio que o desenhado no final de 2019 – que,
verdade seja dita, era mais prudente que pessimista. O Goldman Sachs foi
o último a revisar seu quadro macro para os principais países da
região: Brasil e Equador crescerão 0,7 ponto percentual a menos (1,5% em
vez de 2,2% no primeiro caso; e de -0,3% a um lúgubre -1% no segundo);
Peru, 0,5 a menos (2,8% em lugar de 3,3%); e Colômbia, 0,4 (3% em vez de
3,4%).
Ao contexto adverso se soma uma menor margem de
manobra para políticas contracíclicas que em crises anteriores. A
depreciação generalizada das moedas latino-americanas delimita o campo
de ação da política monetária – juros mais baixos contribuem para a
retomada da atividade, mas também estimulam a saída de recursos. Esse é,
justamente, o maior desafio regional neste ponto, segundo Neto: a
“limitadíssima capacidade de aplicar estímulos num momento em que é
preciso ter muito cuidado com o potencial impacto sobre a saída de
capitais”. No plano fiscal, a margem é igualmente curta, com volumes de
dívida pública que, como recorda Castellano, do IIF, duplicaram em
grande parte da região desde 2009. Naquela época, estes países puderam
fazer frente. “Só os países com espaço fiscal ou monetário e com
reservas de divisas estrangeiras poderão responder ao choque”, conclui
Canudo. Tempos bicudos, sem poções mágicas.
conteúdo
Ignacio Fariza
Madri
El País
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