As finanças do céu costumam ser um atalho para o inferno. Mafiosos, banqueiros enforcados, conspirações, sequestros e outros marcos da crônica policial em torno do dinheiro de Deus confirmam que ninguém é capaz de colocá-las em ordem. Depois de quase sete anos de pontificado de Francisco, os problemas permanecem sem solução: os números estão no vermelho, a Secretaria Econômica continua sem líder −seu responsável, o cardeal George Pell, está preso por abusos sexuais contra menores e não foi substituído− e a bola de neve formada em torno do último escândalo de investimentos em Londres, qualificados pelo próprio secretário de Estado, Pietro Parolin, de “opacos”, trouxe à tona uma guerra suja travada há anos entre diferentes departamentos do Vaticano.
Francisco anunciou no início
de seu pontificado que a primeira reforma, embora não fosse sua
preferida, seria a econômica. Sete anos depois, a secretaria que ele
criou continua sem chefe; o auditor contratado para revisar as contas
foi despedido, intimidado e ameaçado de prisão se não saísse do cargo; o
vice-diretor do Instituto para as Obras de Religião (IOR), Giulio
Mattietti, memória histórica da entidade, viu-se no olho da rua de um
dia para o outro, sem poder entrar novamente no escritório, e o Conselho
para a Economia, presidido pelo cardeal Reinhard Marx, ainda não foi
renovado, apesar de seu mandato ter expirado em fevereiro. A pergunta
que quase ninguém é capaz de responder −e nenhum dos entrevistados quer
comentar por telefone, temendo que esteja grampeado− é quem está à
frente das finanças. “Gostemos ou não, é a maneira que este Papa tem de
comandar. Ele funciona assim”, assinala um alto funcionário da cúria.
O
núcleo da explosão, que provocou durante a última semana uma insólita
troca de acusações entre o secretário de Estado e aquele que foi seu
número dois, o carismático cardeal Angelo Becciu (ambos resolveram logo a
questão), é desta vez o chamado Óbolo de São Pedro: o instrumento da
Santa Sé para recolher as doações do mundo católico (cerca 150 países).
Esse instrumento foi formalizado em 1870, quando o papa Pio IX perdeu os
Estados Pontifícios e as nações católicas tiveram de contribuir para a
sobrevivência do Vaticano: uma parte é destinada à caridade e a outra
−hoje de 70%−, a cobrir gastos operacionais e outras despesas não
especificadas. Mas a significativa queda da arrecadação nos últimos anos
−de 101 milhões de euros (450 milhões de reais) em 2006 para 51 milhões
de euros (227 milhões de reais) em 2018− , vinculada aos escândalos de
abusos nos EUA e à queda do número de fiéis, convida a aumentar o risco
das operações de investimento para fazer as exíguas receitas crescerem.
Aqui começou uma situação “muito delicada”, como explica um dos
protagonistas.
O Óbolo de São Pedro depende da Secretaria
de Estado, que tem cada vez menos atribuições (deixou de controlar a
comunicação depois da última reforma) e está permanentemente sujeita a
rumores (o último situa seu titular como novo patriarca de Veneza).
Depois dos escândalos do IOR, conhecido como Banco do Vaticano, no
início dos anos oitenta, com a quebra do Banco Ambrosiano, decidiu-se
diminuir o risco dividindo a gestão da receita entre a entidade −cujos
rendimentos também caíram pela metade− e a Secretaria de Estado. Pio
XII, como recordou Becciu em sua defesa na semana passada, já havia
aberto as portas para os investimentos imobiliários. Assim, esse
organismo decidiu fazer isso em 2013, inserindo capital em um fundo de
investimento que tinha comprado um luxuoso imóvel no bairro londrino de
Chelsea.
A vertigem de uma operação da qual participou
como consultor o atual primeiro-ministro Conte um mês antes de ser
eleito (como publicou o Financial Times), cristalizou no final de 2018,
em pleno Brexit. A Secretaria de Estado teve de injetar mais dinheiro
−cerca de 150 milhões de dólares (598 milhões de reais), retirados de
contas na Suíça− para assumir o edifício completo e não perder um
investimento que estava em perigo. O IOR, supostamente alarmado pela
quantia elevada, acabou denunciando a situação ao procurador do
Vaticano. Este iniciou uma investigação que provocou uma grande psicose
entre alguns membros da cúria.
Foram revistadas
instalações da Secretaria de Estado e vazados nomes, sobrenomes e fotos
dos investigados, entre eles Tommaso Di Ruzza, diretor da Autoridade de
Informação Financeira (AIF), o organismo encarregado de prevenir a
lavagem de dinheiro no IOR. “Essa é parte do problema. A AIF e o banco
estão sempre em disputa. E pode ser que houvesse uma investigação em
andamento que eles tenham tentado camuflar com a denúncia”, assinala um
alto funcionário do Vaticano que conhece em detalhes as finanças da
Santa Sé.
O chefe da polícia do Vaticano −e da segurança pessoal dos três últimos Papas−, Domenico Giani, renunciou após o vazamento divulgado pela revista L’Espresso,
que fez a Santa Sé voltar aos tempos do Vatileaks. O papa Francisco,
embora tenha condecorado Giani posteriormente, disse que havia sido
cometido um “pecado mortal” e aceitou imediatamente a renúncia. Tudo
isso enquanto o Vaticano encara pela primeira vez o fantasma da
falência, como detalhou com 3.000 documentos secretos o jornalista
Gianluigi Nuzzi no livro Giudizio Universale (“juízo final”). Uma
projeção meio apocalíptica, se levarmos em conta o descomunal patrimônio
imobiliário da Santa Sé, mas muito útil para evidenciar uma certa
incapacidade de administrá-lo.
A APSA, empresa que
controla todas as propriedades do Vaticano (cerca de 4.400 imóveis que
valem, ao todo, 2,7 bilhões de euros, ou 12 bilhões de reais) e que se
transformou em um banco paralelo, fechou 2018 com um resultado
operacional de -27% − a primeira vez em sua história que fica no
vermelho. O argumento é que teve de resgatar com 25 milhões de euros
(111 milhões de reais) o hospital Istituto Dermopatico Dell’Immacolata
(IDI) da falência (também por várias fraudes) e todas as perdas com o
empréstimo concedido pela APSA foram registradas em um mesmo ano para
não arrastá-las para o ano seguinte. Mas já não há ninguém na Santa Sé
que confie na gestão de uma entidade cujo diretor anterior, monsenhor
Nunzio Scarano, foi preso por lavagem de dinheiro. “Há imóveis que não
rendem nada porque estão alugados para prestar favores que depois
poderão ser cobrados de uma maneira ou outra, mas que prejudicam a
economia”, explica um ex-responsável pelas finanças da Santa Sé.
Especificamente, 15% dos imóveis, segundo o livro de Nuzzi, e metade do
total está alugada por preços camaradas. O valor médio do aluguel é de 8
euros (35,65 reais) por metro quadrado. Os valores são de 20% a 80%
menores que os de mercado.
Ninguém duvida, no entanto,
que a crise aberta nas últimas semanas vai além do aspecto econômico e
atinge em cheio a capacidade de serviço de um grande grupo de
funcionários da Igreja. O Papa contratou um novo procurador, Giuseppe
Pignatone, o juiz que decidiu arquivar em 2012 o caso do desaparecimento
de Emanuela Orlandi, que sempre foi vinculado a uma trama sombria em
torno do IOR e à quebra do Banco Ambrosiano. Trata-se de um linha-dura
acostumado a lidar com os assuntos da máfia na Sicília, na Calábria e em
Roma. Um sinal inequívoco da natureza do problema que envolve a Santa
Sé, no qual Londres, como ocorreu na época do “banqueiro de Deus”
Roberto Calvi (1920-1982), volta a ser uma cidade maldita.
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Daniel Verdú
Roma
El País
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