O presidente da extrema-direita Jair Bolsonaro comemora que o número de homicídios caiu 20% em 2019 no Brasil e o de estupro 12%, segundo dados compilados pelo Ministério da Justiça, sob o comando de Sergio Moro. Os dados coexistem, no entanto, com fortes sinais de que os feminicídios disparam, pois aumentaram 44% em São Paulo este ano (até agosto, segundo dados compilados pelo site G1). Na comparação entre 2017 e 2018, houve um crescimento de 4% dos feminicídios em todo o país. A cada quatro horas uma mulher é morta por ser mulher, por medo ou por ódio.
Estamos na paradoxal situação de que enquanto menos homens
no Brasil são vítimas mortais da violência, mais mulheres, a grande
maioria negras e pobres, são sacrificadas todos os meses no Brasil, onde
o Governo tenta introduzir cânones do modelo de família tradicional e
cristã, cujos únicos valores são aqueles que vigiam antes da
Constituição de 1988, quando se considerava que a mulher existia para servir o homem ou, como reza a doutrina tradicional cristã, para “obedecer ao marido em tudo”.
Perguntaram-me
há alguns dias se tenho esperança de que a mulher possa recuperar a
mesma dignidade do homem na sociedade, o mesmo respeito como pessoa
humana e o mesmo direito à vida. O que penso é que essa utopia só
acontecerá quando também as mulheres, e não apenas os homens, e no
Brasil principalmente as negras e pobres que são maioria, puderem
escrever a história.
O mundo contado apenas pelos homens
brancos e por eles governado continuará sendo machista porque eles
moldaram as leis e criaram os mitos, entre eles o de que a mulher é
inferior ao homem e a ele deve se submeter. E isso das cavernas até
hoje. E até nas religiões. Na Igreja Católica,
São Tomás de Aquino chegou a duvidar que a mulher tivesse alma. O que a
Igreja de Roma nunca deixou de acreditar e pregar é que a mulher é uma
causa de pecado para o homem. Por isso, talvez, até hoje a mulher não
possa ter acesso ao sacerdócio. Continua sendo vista como inferior.
O
mundo, as guerras, o amor, a vida e a morte, os sentimentos foram
forjados apenas por metade da humanidade. A outra metade sofreu e
aguentou até hoje, e no Brasil está em ascensão o machismo
que volta a matar mais mulheres do que antes. Eu sei que me dizem que
prefiro agora um mundo regido pelo elemento feminino em substituição ao
masculino. Não, mas como foram os homens que contaram o mundo às
mulheres, deixemos que elas provem o mesmo direito de se equivocar como
nós. E se elas conseguissem criar um mundo diferente com menos ódio e
mais colaboração? E se forem capazes de criar uma sociedade na qual a
violência e a desigualdade escandalosa não sejam a chave da história,
nem das guerras, nem da cor da pele nem da cor da sexualidade?
Se
nós, homens, fôssemos sinceros, deveríamos aceitar que criamos para as
mulheres e os negros um mundo de excluídos. Até a história do passado
fomos nós que escrevemos. Hoje estamos diante de um Brasil duplamente
dominado pelo pior da masculinidade e pela maior rejeição à mulher e
àqueles que não se encaixam no modelo do macho alfa. Não seria por isso
que o país está menos alegre, mais dividido, mais violento e com o ódio
que corre solto?
O pouco da história que aqui foi criado e
contado pelas mulheres aqui é o das mães, especialmente as pobres e
negras, que tiveram de sustentar sozinhas seus filhos e família. E nessa
história, às vezes escrita com sangue, podemos tocar com as mãos a
força, o sacrifício e o trabalho amoroso que essas mulheres heroínas às
vezes exibem até com alegria. Choram, mas são mais fortes e menos
covardes do que os homens que as abandonam à própria sorte.
São essas mulheres que um dia também poderiam escrever a história deste país, como havia começado a fazer no Rio de Janeiro a jovem negra e lésbica Marielle Franco,
assassinada porque a história que tinha começado a fazer e escrever
assustou os homens, que matam as mulheres que pretendem viver em
liberdade para criar um mundo que, como se conta no mito bíblico da
criação, “Deus viu que era bom”.
No entanto, nesse mesmo
livro da Bíblia, que é um formidável mito literário, duas versões
diferentes da criação do homem e da mulher são apresentadas em seguida
no primeiro capítulo do Gênesis. Na primeira, a libertadora, Deus cria o
homem e a mulher do mesmo barro da terra. Ambos com a mesma dignidade,
para que juntos tecessem a história. E na segunda, a machista, Deus cria
primeiro Adão e a partir de uma de suas costelas faz Eva nascer,
porque, diz o relato que “não era bom que o homem estivesse sozinho”. A
mulher aqui é criada para o alívio da solidão do homem. É a alvorada da
escravidão feminina.
Talvez apenas quando, no mundo novo
que está palpitando para nascer, a humanidade recuperar a versão da
mulher criada como o homem com os mesmos pecados, mas com a mesma
liberdade de acertar e errar, só então poderemos ter um mundo onde
conceitos como feminicídio, machismo e homofobia sejam apenas objetos de museu.
As
mulheres, como sempre, continuam sendo mortas porque se tem medo delas.
No final, sempre, se matou no mundo por medo ou por ódio. O
feminicídio, um termo feliz criado pela socióloga sul-africana Diana
E.H. Russell para indicar quando se matam mulheres pelo mero crime de
serem mulheres, é um dos mais covardes e perversos criados pelo homem.
Até quando?
conteúdo
Juan Arias
El País
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