Uma parte deste continente latino-americano está em chamas, com graves convulsões sociais. Há quem acredite ou espere que, depois do Chile tomado por manifestações de protesto contra o Governo, chegará a hora também de o Brasil sair às ruas para protestar “contra tudo o que está aí”.
Será
verdade? O perigo existe porque se acumulam, de um lado e de outro,
reivindicações de tipo político e social que as pessoas amontoam todos
os dias. E já se percebem tambores de guerra nas redes sociais e nas
instituições do Estado.
Até os militares parecem estar alarmados e o presidente da República, desde a distante China, já sugeriu que o Exército deve estar preparado para o caso de o incêndio chegar.
Para aqueles que me perguntam agora, da Espanha, se penso
que o Brasil pode ser o segundo Chile, minha resposta, que pode ser mais
um desejo do que uma profecia, é que o Brasil é um continente que não
pretende renunciar aos valores da democracia, por mais imperfeita que
seja, para voltar às trevas da ditadura. Uma demonstração é que é
visível uma resistência cada vez mais ampla, de todas as categorias,
contra as tentações de um Governo autoritário que cada dia mostra novas nostalgias medievais, seja no campo político ou no cultural.
Dito
isto, o que o Brasil não pode, nessas horas de convulsão no continente,
é brincar com fogo. E os políticos e magistrados que acreditam e
pontificam que não devem agir com os olhos postos nas ruas, nas pessoas,
mas nas leis, brincam de incendiar o país. Brincam de guerra quando são
incapazes de ver que, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, as
sociedades já não aceitam passivamente o acúmulo de privilégios daqueles
que os governam, algo que às vezes humilha quem tem de trabalhar duro
para não conseguir pagar as contas do mês.
Esse acúmulo de privilégios, esse não querer olhar pela janela para ouvir o grito das ruas que pede mais justiça e menos desperdício por parte do poder,
é o que pode arrastar o Brasil a seguir o exemplo do Chile. Foi a
cínica declaração por parte do poder de que os chilenos deveriam acordar
mais cedo ao ir ao trabalho para pegar o metrô que nessas horas é mais
barato, o pavio que atiçou o fogo que já fez vítimas mortais. E foi a
velhinha aposentada que gritou que um deputado ganhava em dois dias o
que ela recebia para viver o mês inteiro. E no Brasil não é igual?
Não
se pode brincar com fogo quando, além disso, se está cercado por
incêndios em todos os lugares e todos com a mesma origem de
descontentamento social. E se pode brincar com fogo de muitas maneiras.
Os políticos brincam com ele quando parecem preocupados apenas em
acumular privilégios, enquanto milhões de brasileiros estão voltando à
pobreza porque não conseguem fazer frente ao aumento da luz, do gás, da
gasolina e das compras.
Brincam com fogo os juízes que se
servem de seu poder misturando a política com a justiça. Os magistrados
do Supremo brincam com fogo quando desde seu olimpo chegam a verbalizar
que não têm por que olhar pela janela para saber o que as pessoas
querem e pedem porque eles têm de responder apenas à letra da
Constituição, como se essa Constituição tivesse sido escrita para outro
planeta e não para as pessoas que trabalham e sofrem, que se sacrificam
todos os dias e se assustam com os escândalos de corrupção. É verdade
que a justiça não pode ir a reboque do que gritam uns e outros e que
eles devem ser fiéis ao seu dever de independência ao julgar. Mas
tampouco podem agir de costas para a opinião pública que é quem os
mantém no poder e alimenta seus privilégios.
Não podem ignorar que existem decisões que são tão graves que devem ouvir a sociedade, como, por exemplo, a de não permitir que um criminoso seja preso antes de passar por todas as instâncias,
o que às vezes leva anos e serve apenas para os ricos e poderosos,
porque os pobres acabam presos de qualquer maneira. Não podem ignorar
que as pessoas comuns entenderão que toda essa fidelidade à letra da
Constituição serve mesmo é aos poderosos. Se a lei fosse tão clara que
proibisse a prisão depois da condenação em segunda instância por um
tribunal, os próprios magistrados não teriam mudado de opinião várias
vezes e de novo estão a caminho de mudá-la outra vez.
Acredito que, por exemplo, o presidente do Supremo, Dias Toffoli,
fez muito bem em atrasar a grave decisão que o Supremo está tomando
sobre uma questão que chega à consciência dos menos instruídos e que não
deve ser tão evidente se o próprio Supremo está dividido ao meio. Este
não parece ser o momento mais adequado, pois os ânimos das pessoas estão
crispados, para tomar uma decisão que será difícil não ser vista como
uma manobra dos poderosos para deter a luta contra a corrupção, que,
como estamos vendo, aparece incrustada até no novo Governo que chegou ao
poder em boa parte porque fez sua a bandeira contra a corrupção.
Continuo
pensando que a vocação do brasileiro é a busca da felicidade e que não
pertence à sua essência o espírito guerreiro que hoje se lhe quer ser
imprimir. Fez com que me lembrasse do primeiro conselho que Fernanda Montenegro,
a maior atriz deste país, que continua lúcida e fiel à sua gente aos 90
anos, me deu quando cheguei aqui há 20 anos. Ela me disse: “Se você
quer entender os brasileiros, lembre-se de que uma diferença essencial
entre os europeus é que nós não temos vergonha de dizer que somos
felizes”.
Que essa vocação quase genética para a
felicidade, a liberdade e a riqueza cultural não seja profanada por
aqueles que podem arrastar o país para incendiá-lo em uma luta que pode
acabar em lúgubres presságios de guerra civil. Nesse dia o Brasil teria
que mudar de nome ou se reinventar. E o mundo inteiro seria mais pobre,
já que o Brasil não é um número no mapa, é também uma maneira de ser e
de viver.
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Juan Arías
El País
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