Um documento obtido nesta quarta-feira pelo EL PAÍS detalha acusações de falhas e fraudes feitas pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge contra as investigações do caso Marielle desenvolvidas pela Polícia Civil do Rio. As acusações foram feitas no pedido de federalização do caso, protocolado por ela no Superior Tribunal de Justiça no último dia em que ocupou o cargo, em setembro, e que está sob sigilo.
Mesmo poupando o
Ministério Público Estadual do Rio das críticas de falhas e fraudes,
Dodge colocou mais peso nas diferenças entre policiais civis,
promotores, policiais federais e Ministério Público Federal sobre as
linhas de investigação dos possíveis mandantes do crime, que seguem desconhecidos após mais de um ano e meio de investigações, com mudanças de comando e sobressaltos e divergências de versões.
O último capítulo foi a iniciativa de policiais civis e promotores de verificar se havia o envolvimento do presidente Jair Bolsonaro com os supostos assassinos, porque um porteiro do condomínio afirmou em depoimento
que no dia do crime um dos envolvidos, o ex-policial Elcio Queiroz ,
tinha pedido e obtido autorização do presidente para entrar no seu
condomínio, num desdobramento revelado pelo Jornal Nacional na
terça-feira. O próprio Ministério Público do Rio, no entanto, disse,
nesta quarta, que as declarações do funcionários se contradizem com as
gravações em poder das autoridades, ainda que restem dúvidas a respeito.
O imbróglio sobre o depoimento do porteiro — e o vazamento
dele à imprensa— não são exatamente uma novidade em uma investigação
marcada por idas e vindas, onde já foram suspeitos um vereador, um
miliciano encarcerado no período do assassinato. Do “perdão judicial”
para milicianos em troca de confissões mentirosas ao delegado que teria
orientado falsa testemunha, estes seriam sintomas de um quadro de
“contaminação” quase generalizada do aparato policial, diz Dodge no
documento.
Com base nesta situação de descalabro, ela
solicitou a federalização de parte do caso do assassinato da vereadora e
de seu motorista Anderson Gomes. Para a ex-PGR há no Rio
uma “relação de promiscuidade” entre as forças de segurança e os
milicianos que impede que se chegue aos mandantes do crime. “Tal
contaminação, além de gerar óbvia ineficiência (...) indica que
existirão com absoluta certeza atividades deletérias [prejudiciais]
feitas por criminosos infiltrados na Polícia”, escreveu.
O
objetivo dos criminosos seria atrasar a investigação e prejudicar a
coleta de provas. “Houve falha e insuficiência do serviço de
investigação, e mantém-se ambiente comprometido e desfavorável à
apuração isenta dos fatos relativos aos mandantes”, afirma Dodge. Essas
supostas irregularidades cometidas pelos policiais fluminenses ao longo
das investigações do caso vieram à tona após a Polícia Federal, a pedido
da PGR, instaurar inquérito para apurar eventuais obstruções e fraudes
no processo.
Boa parte desse material serviu para embasar
o pedido de federalização feito por Dodge, que caso aceito pelo
Superior Tribunal de Justiça se limitará a apurar quem são os mandantes:
ela denunciou Domingos Brazão,
conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e ex-líder
do PMDB na Assembleia Legislativa do Rio, por obstrução das
investigações e pediu que ele seja investigado como “arquiteto
intelectual” dos assassinatos. No entanto, nesta quarta-feira a
promotora Letícia Emily, responsável pelo caso Marielle no Ministério
Público do Rio, afirmou que “não há nenhuma prova concreta” da
participação de Brazão no crime.
Guerra de versões à
parte, Dodge traça um cenário sombrio da situação do Rio de Janeiro.
Segundo ela, a investigação da PF é “uma das provas mais contundentes de
tal contaminação [das polícias estaduais]”. Neste documento constam
“diversas menções ao Escritório do Crime [grupo suspeito de ter
assassinado Marielle e Anderson], às milícias espalhadas na cidade, seus
homicídios mediante pagamento, participação de policiais ou
ex-policiais, em um cenário de plena impunidade”. Mais adiante Dodge
afirma que “nem a intervenção federal no Estado do Rio em 2018 conseguiu reverter” este problema.
Em
um dos trechos mais emblemáticos do documento, a então PGR afirma que o
delegado Giniton Lages, primeiro responsável pelas investigações que
apontou Lessa e Elcio como executores, tentou pressionar o miliciano
Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, preso em Bangu I, para
que este assumisse ter sido contratado pelo vereador Marcelo Siciliano
para matar Marielle. O miliciano teria se recusado. O delegado então
teria feito uma contraproposta: se Araújo assumisse apenas ter sido
sondado pelo parlamentar para cometer o crime, ele receberia “perdão
judicial” e ainda teria dito que em outro processo no qual Curicica era
acusado de homicídio ele seria “possivelmente impronunciado”, isto é,
não iria a júri.
Segundo o miliciano, Lages teria dito
que foi ao presídio “sonhando com sua confissão”. Em maio de 2018 foi
ventilada na imprensa a possibilidade de que Araújo firmasse acordo de
delação premiada. A proposta do delegado para que o miliciano mentisse
para incriminar o vereador Siciliano, no entanto, veio à tona apenas em
depoimentos feitos à PF.
Dodge também critica o agente da
Delegacia de Homicídios que chefiava as investigações da especializada,
porque ele “teria, inclusive, orientado Rodrigo Ferreira, que
nitidamente mentiu e atrasou a apuração dos citados homicídios” e
“corrigiu detalhes” do falso depoimento que ele prestou.
Os vazamentos de informação, tão comuns em investigações como a Operação Lava Jato,
também são criticados por Dodge, e vistos como entraves às
investigações do caso Marielle. “A apuração da Polícia Federal atestou a
quebra de sigilo das investigações da Polícia Civil, com vazamentos à
imprensa de informações cruciais para a busca da verdade sobre os
assassinatos”, escreveu a PGR.
conteúdo
Daniel Haidar
Rio de Janeiro
Gil Alessi
São Paulo
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