Os malditos “homens de bem” têm declarado de forma explícita: existe uma diferença entre humanos. Ela não é de raça e nem de cor. Não é de religião e nem de status social. Trata-se de uma diferença mais profunda. Uns, segundo esse grupo, têm direito a ter direitos. Os demais? Não são humanos o suficiente para ter o direito a ter direitos. Essa fronteira entre homens de bem e o restante da humanidade é invisível.
Não é por acaso que, em uma era em que a democracia é golpeada todos os dias, há um termo que passou a ser alvo de ataques frequentes: os direitos humanos.
Sim, aquele arcabouço de leis que prevê a proibição da tortura, as
garantias de liberdade e a possibilidade de se defender. Aquele sistema
que também estabelece o direito à saúde, à educação e, acima de tudo, à
vida. Passou a ser lugar comum no Brasil questionar a conveniência dos
direitos humanos, visto por uma ala do país como sinônimo de um pacote
de leis que defende bandidos. Mas defende de quê? Da Justiça? Ou de
justiceiros, herdeiros de uma sociedade escravocrata, racista e injusta?
Em cada ocasião que ouvimos o ódio ao conceito de direitos
fundamentais, vale a pergunta: quem é que tem medo dos direitos humanos?
Num Estado falido, será que a tortura empregada por agentes em supostos
interrogatórios vem mesmo daqueles com a ambição de garantir a
segurança e Justiça a uma população?
O medo dos direitos
humanos, no fundo, é o medo de que tenham de dar explicações, de
investigar, de ser transparentes na busca de criminosos. De uma forma
indireta, ao apelar para que direitos fundamentais sejam respeitados,
escancara-se o despreparo do Estado para garantir a segurança de seus
cidadãos. E não a proteção de bandidos.
Quando esse arcabouço de leis coloca as mulheres
num mesmo patamar de direitos em relação aos homens, não faltam aquelas
vozes que, na surdina, reclamam de que está havendo um “exagero”. Num
país com 164 estupros por dia, ouvimos recentemente um chanceler
reclamar que o moralismo estava ultrapassando a realidade da época
vitoriana, que “hoje olhar para uma mulher já é uma tentativa de
estupro” e que estava “preocupado com a demonização da sexualidade
masculina”.
Mas quem tem medo de tal situação senão
aquele que vê nesses direitos humanos um limite ao seu poder? Quando um
Estado é convidado a reparar um dano histórico a um grupo da sociedade
explorado por 300 anos, rapidamente ouvimos vozes de que não é justo com
os nossos filhos ter de competir contra cotas. “Eu não sou culpado pela
escravidão. Eu falo com todos”, garantem, numa referência certamente ao
porteiro, ao segurança e ao lixeiro. Fala-se com todos no Brasil. Mas
para dar ordens. Para exigir respeito. Mas será que todos são também
escutados?
Quando o direito à defesa é ignorado ou
violado, rapidamente há quem tome as dores para alertar que o crime
precisa ser combatido. Que há uma “inversão” do papel entre os
delinquentes e aqueles que querem combater o crime. Um versão do século
21 para a ideia de que os fins justificam os meios.
Numa democracia, tal atitude é simplesmente um crime, além de ser sua própria ruína. Robert Bolt, em sua peça A Man for All Seasons,
traduz em um diálogo encenado no século 16 o falso dilema de que certas
pessoas não mereceriam nossas nobres instituições. Na cena, o advogado
William Roper questiona Thomas More sobre o fato de ser adequado
defender um homem que seria um representante das forças do mal na
sociedade.
Então, você daria ao Diabo o benefício da
lei — exclamou Roper. Sim. O que você faria? Abriria uma grande estrada
pelo direito para agarrar o Diabo?, perguntou More. Eu cortaria toda a
lei na Inglaterra para isso, respondeu Roper. E quando a última lei for
derrubada e o Diabo se virar contra você, onde é que você se esconderá
se todas as leis foram destruídas?, alertou More. Este país está repleto
de leis, de costa a costa, as leis dos homens, não as de Deus! E se
você as cortar, você realmente acha que pode ficar de pé diante dos
ventos que soprariam então? Sim, eu daria ao Diabo o benefício da lei,
por minha própria segurança!
Evocar o estado de direito
ou direitos humanos, portanto, é garantir nossa própria sobrevivência e
liberdades fundamentais. Onde está consolidada a relação de que estados
que não seguem regras básicas de respeito ao ser humano são mais
seguros? Onde estão os indícios de que um estado que mata é aquele que
mais liberdades assegura aos “cidadãos de bem”? Onde estão as provas de
que um Estado que dribla o estado de direito é quem vai garantir a
liberdade? Se essa linha entre nós e eles é desenhada sobre a areia, que
garantias temos de que um dia não seremos colocados do outro lado da
fronteira por dar a mão na rua a quem desejarmos, ler o que sonharmos,
orar por quem nos inspira?
Nesta quinta-feira, dia 17, o
Brasil foi eleito para mais um mandato no
Conselho de Direitos Humanos da ONU. Caberá ao Estado usar tal mandato
para fazer avançar a proteção de minorias e grupos vulneráveis, do
estado de direito e do espaço democrático. Justamente para que toda a
sociedade seja preservada em seus direitos fundamentais. A defesa dos
direitos humanos é a defesa da civilização. É a garantia de Justiça e o
único caminho para a paz. Não existem atalhos. Para isso, teremos de
defender, diariamente, o direito de todos. Do rei e do diabo. E
inclusive de nossos maiores adversários.
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Jamil Chade
El País
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