O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes (Diamantino - MT, 1955), é mais ou menos popular, a depender das causas que defende com a veemência que lhe é característica. Desde junho, encontrou nos vazamentos do The Intercept uma fonte que corrobora suas críticas ácidas aos métodos da Operação Lava Jato, regozijo para o público da esquerda. Hoje, se pergunta se a Lava Jato ainda é necessária como operação especial. Mesmo com a possibilidade de solicitar acesso às mensagens dos hackers acusados de invadir os celulares das autoridades, Mendes garante que não teve curiosidade de ver seu conteúdo.
Pergunta. Estamos em um momento mundial em que vários sistemas judiciários se fragilizam. O Brasil está ameaçado?
Resposta. Não me parece que haja essa possibilidade. A não ser que, de fato, outras coisas viessem a ocorrer. Por exemplo, a formação de uma maioria, como aconteceu na Hungria
ou na Polônia, opressiva, e que fosse servil a um dado entendimento.
Mas se a gente olhar o quadro pluripartidário brasileiro, temos os dois
partidos que lideraram as eleições, PT e PSL, cada um conseguiu 50 e
poucos parlamentares, em 513. Nem 10%. E todos são dependentes, para
construção básica de Governo, de apoio de outras forças. Por isso, num
quadro de normalidade, não parece possível que isto aconteça. Mesmo numa
vitória retumbante de um presidente, vamos conviver com um pouco de
fragmentação, o que é bom para o equilíbrio democrático. Não vejo esse
risco neste momento.
P. Mas temos outros movimentos de pressão como a Lava Toga, pedido de impeachment do Gilmar Mendes…
R. É claro que temos vivido situações muito especiais. Esse ataque a instituições, isso que vem sendo revelado e que nos levou a abrir aquele inquérito [de fake news sobre o Supremo].
Porque o tribunal vem sendo alvo de ataques, às vezes, por entes
invisíveis, ou não exatamente invisíveis. Vocês podem reconhecer a boa
qualidade das peças que circulam contra o Tribunal. Há conteúdo e
elaboração que é feito por alguém, que está sendo financiado. Muitas
vezes, vemos que, por trás desse tipo de intenção [pedido de impeachment
de integrantes da Corte, por exemplo], há uma desculpa para
desestabilizar, amedrontar, ou conseguir seus desideratos por uma via
coativa. Isso se usou no Brasil. A abertura de inquérito para investigar
ministro do STJ, o presidente e um outro, se deu neste contexto. E qual
foi o resultado? O STJ perdeu qualquer função em seu sistema de
controle. Ficou um Tribunal amedrontado. A partir de uma acusação
estapafúrdia, feita pelo senador Delcídio [Amaral],
foi levado para o 'pelourinho' o presidente do STJ [na época, Francisco
Falcão] e outro juiz [Marcelo Navarro]. Acusados de supostamente terem
dado decisões favoráveis a Marcelo Odebrecht – fruto de uma possível
combinação com a Dilma.
Um fato que não era nem provável, nem provado. Transformou-se,
portanto, num elemento de coação. Eu denunciei o absurdo de terem aberto
esse inquérito. Até que ele, de fato, foi encerrado. Precisamos prestar
atenção. E há também essa deslegitimação. Em que a mídia convencional
também foi parte.
P. O senhor já falou em "lavajatismo militante" da imprensa. Pode dar um exemplo?
R. Eu
acabei de dar uma entrevista à Rede Globo e eles me perguntaram: “O
senhor não acha que causou esses ataques que sofreu na rua?”. Eu disse
não, não fui eu que causei, vocês causaram. Vocês são os autores. Eu
dialogo com a Globo desde o ano passado. Disse até, em tom de
brincadeira, ao Ali Kamel: “Se minha mulher ficar viúva, é capaz que ela mova uma ação contra vocês, porque vocês estão causando isto”.
P.
Não é exagero atribuir tanto poder à imprensa? Temos que admitir que o
clima entre instituições não favorece um noticiário positivo...
R. Vou
lembrar um caso ao qual não temos dado muita atenção, o assassinato do
Pinheiro Machado, em 1915. Ele tinha sido condestável do Governo Hermes
da Fonseca, e foi morto na rua no Hotel dos Estrangeiros, no Rio de
Janeiro. Tinha ido lá receber uma delegação de políticos e alguém lhe
deu uma facada. Depois de muita investigação e teorias conspiratórias,
concluiu-se que os jornais da época tinham ascendido na cabeça de um
fanático a ideia de que a solução para os problemas do país estava na
eliminação do Pinheiro Machado. Vocês podem produzir isso. E de fato era
muito comum eu decidir um habeas corpus na [Segunda] Turma e se dizer: “Gilmar soltou”.
A imprensa tem muita responsabilidade. Eu tenho a impressão, usando uma
expressão machadiana, de um conúbio espúrio entre a imprensa e a Lava
Jato. Haverá motivos nobres – eles estavam imbuídos no sentido de
combater a corrupção. E outros não nobres. A mídia recebia essas
informações vazadas, de alguma forma era conivente com os vazamentos.
Tanto é que esses vazamentos ocorreram sistematicamente, e nós não
temos ninguém punido por isso. Eu vejo as pessoas hoje muito críticas em
relação ao hackeamento [dos celulares dos procuradores da Lava Jato]. E
quanto a esse episódio eu digo: hackeamento é crime, igual a vazamento.
P. Mas o STF pediu alguma investigação? Por que o inquérito das fake news, que o senhor tem defendido, usa como argumento que o MP e a Polícia Federal não deram a devida atenção às ameaças.
R.
Foi pedido, várias vezes. Temos um caso que está na [Segunda] Turma já
há algum tempo, e quase que identificados os autores – que é o gabinete
do procurador-geral –, envolvendo um episódio da Odebrecht.
Trata-se de um vazamento que custou muito aos funcionários da
Odebrecht, acho que no Peru e na Venezuela. E a empresa reclamou, porque
desestabilizou seus representantes por lá. Nós pedimos aqui [uma
investigação]. O ministro [Edson] Fachin determinou à Procuradoria, e
até hoje acho que não houve resposta. Mas o vazamento ocorreu de forma
muito grave. No The Intercept aparece esta questão, em que Moro e Dallagnol conversam sobre a necessidade de um vazamento
P.
O senhor está dizendo que o STF tem demandas que não são atendidas e
por isso decidiu usar o regimento interno, de uma forma criativa, para
dar conta de suas próprias solicitações?
R.
Na verdade, isto é um remédio, que já havia no texto constitucional
anterior. Mas vocês incorporaram uma discussão que me parece equivocada.
O próprio poder investigatório do MP é uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal.
Na qual o Tribunal, compreensivamente até, fez uma construção. Tínhamos
em muitos casos um conflito entre a polícia e o Ministério Público. E
quem era o investigado, muitas vezes era a polícia,
auto-investigando-se. Nós sabemos de muitos crimes cometidos pela
própria polícia, seja civil ou militar. Nestes casos, o MP, que é órgão
de controle, poderia fazer de maneira mais adequada essas investigações.
Mas como isto se fez num construto, desandou num festival de abusos.
Abriram-se muitas investigações sem freios e contrapesos. Porque a
investigação feita pela polícia está submetida a um juiz. Já a do
Ministério Público ficou uma alma penada solta no sistema. Mas são
ajustes que teremos que fazer. Não podemos ficar muito aflitos. Estamos
vivendo 31 anos de normalidade institucional, um pouco mais talvez, se
consideramos 1985. É um curto período. Mas é também o mais longo período
de normalidade institucional do Brasil republicano, pelo menos.
P. Mas neste período, o Brasil passou por dois processos de impeachment.
R. Mas o que é o impeachment, independentemente das considerações particulares que a gente possa fazer? De alguma forma, é um modelo de parlamentarização de um sistema presidencial.
Porque, dependendo da tendência política alguém vai poder dizer que o
impeachment do Collor foi justo, mas o da Dilma foi injusto. Mas, nos
dois casos, havia uma crise de governabilidade. Chegou um momento em que
o sistema já não mais funcionava. Collor tinha problema de corrupção.
Evidente que tinha. No mensalão, nós tínhamos também problema de corrupção e se optou por não fazer o impeachment
P. O regime interno do STF já foi usado até para censura de matéria de uma revista. Este instrumento compete com a Constituição?
R.
É um tipo de competência das competências. É o Tribunal no limite. Mas
não há muita novidade nisso. Nós abrimos os inquéritos aqui, e
presidimos os inquéritos, que depois resultam em denúncias. A própria
investigação do MP, como eu disse, é algo recente. O resultado é que
isto acabou se transformando em algo principal. O MP passou a fazer
investigações nesse modelo de empoderamento. É claro que devemos estar
preocupados. Nós temos que buscar reinstitucionalização, tanto quanto
possível. Limitar as idiossincrasias do sistema, de alguma forma. E eu posso dizer, até com certo orgulho, que eu tive uma visão antecipatória.
P. O senhor poderia dar um exemplo?
R. A Lei de Abuso de Autoridade,
esse projeto que está sendo aprovado, constou naquele pacto republicano
que assinei, em nome do Supremo Tribunal Federal, com os presidentes da
Câmara, do Senado, e com o presidente Lula. Esse projeto foi gestado
aqui, no CNJ. O ministro Teori [Zavascki] participou da sua feitura.
Também o Everardo Maciel [ex-secretário da Receita Federal]. Em suma, o
projeto inicial, que foi apresentado no Congresso pelo deputado Raul
Jungmann [PL 6418/2009]
nasceu disso. Porque eu percebia que era fundamental naquele contexto
já termos uma lei de abuso de autoridade. E veja que, toda hora, ela
esbarrava em obstáculos. Às vezes, era um delegado que era relator, às
vezes era um policial, às vezes era um membro do MP que não aceitava. E
não ia adiante. Agora, por ironia, neste contexto, de um governo todo
diferente, é que se conseguiu aprovar essa lei, que, independentemente
do conteúdo que lá esteja – alguém vai polemizar se tem exagero ou não
–, é um avanço na contenção dos abusos que sistematicamente se
perpetravam.
P.
Sobre a lei de abusos a autoridades, já tivemos relatos de procuradores
que estão se autocensurando em investigações por medo dessa lei...
R.
Até aqui, eu não consigo nem ver razões para isso. Se trata de um
projeto de lei que ainda está no período que chamamos de vacatio legis,
só vai entrar em vigor em janeiro.
P. Mas só faltam três meses.
R. Pois é, mas alguém dizer que não vai
decidir alguma coisa porque na lei, futura, haverá uma punição, é uma
coisa muito curiosa. Vem de uma desconfiança que eles têm em relação a
si mesmos. Eu até tenho falado que, em relação a Lava Jato, eles [os procuradores] são melhores publicitários do que juristas.
Esta afirmação que eles fazem de que haverá um prejuízo para a
investigação, é uma coisa de caráter publicitário. Das leis que eles
aplicam em relação aos outros, eles não se queixam. E são leis
absurdamente genéricas, oportunistas. A Ficha Limpa, muito genérica. A
Lei de Improbidade Administrativa, que foi aprovada com Collor, muito
genérica. Há uma queixa muito grande hoje de todos os agentes políticos
dizendo que o MP quase que assume a gestão dos seus municípios. Esses
dias, o governador [João] Doria
fez uma assertiva peremptória em relação a isso: é preciso limitar os
poderes do MP, que fica toda hora intervindo em áreas que não têm nada a
ver com a sua atividade. Portanto, essas queixas que eles fazem, outros
fazem com relação ao MP. Temos que buscar um equilíbrio, em que não se
afirme o nosso poder absoluto, e que nós reconheçamos que o sistema de
equilíbrio tem a ver exatamente com checks and balances. É preciso que isso seja cultivado, que todos nós façamos a autocrítica ou que admitamos crítica de outro.
P. Ministro, foi uma autocrítica que o fez mudar de ideia sobre a prisão após a segunda instância? Em 2016, o senhor apoiou. Recentemente, chamou de “experimento institucional”. O que mudou?
R.
Várias coisas mudaram. O que nós tínhamos até 1988 [ano da promulgação
da Constituição]? A regra era que com a decisão de segundo grau
mandava-se as pessoas para a cadeia. Pós-88, continua assim também o
entendimento do Tribunal. Eu cheguei aqui em 2002, já se vão 16 anos. E
se falava a mesma coisa: com a decisão de segundo grau pode-se mandar a
pessoa para cadeia e ponto. Portanto, começava-se uma execução
provisória. Mas com a história de 1988 [e a Constituição], tivemos uma
regra muito clara dizendo que a presunção de inocência só se encerra com
o trânsito em julgado. O que passou a acontecer? Nós tivemos até um
episódio do processo do ministro Dias Toffoli, que envolvia o ex-senador
Luiz Estevão, em que houve toda a série de recursos e ao fim o ministro
Toffoli se penitenciava e dizia: “Se eu não decidir isso hoje, isso vai
resultar em prescrição”. Neste contexto, nós começamos a confabular
sobre a necessidade de, em determinados casos, encerrar esse curso dos
recursos procrastinatórios, que, em geral, beneficia sempre as pessoas
que têm mais recursos. Naquele caso, o processo ficou dez anos com
recursos sucessivos. Essa questão voltou para a turma e o ministro Teori
trouxe um processo para julgamento, em que nós discutimos e dissemos:
“Nós poderíamos admitir pelo menos a possibilidade de o juiz, encerrada a
decisão de segundo grau, já determinar o cumprimento da pena”. Aí você
diz, isto vai violar o texto constitucional. Nós dissemos: “Poderá
haver, em determinados casos, a suspensão por parte dos tribunais
superiores, que seríamos nós e o STJ”.
P. Mas o que ocorreu é que a prisões em segunda instância se tornaram regra no âmbito daLava Jato, mas não só.
R. Veja,
isso foi feito em um ambiente alheio à Lava Jato, nada tinha a ver com a
Lava Jato. O que aconteceu na prática? Como aconteceu no caso que citei
do MP, em que a investigação deveria ser subsidiária e se tornou
principal. A Dra. Raquel [Dodge] me falava que o Dr. Janot deixou 800
PiCs, que é o nome dessa investigação, procedimento de investigação
criminal, abertos na Procuradoria. Portanto, sem nenhuma limitação.
Então, o que aconteceu na vida prática? A generalização da prisão a
partir do segundo grau. O Tribunal Regional do Rio Grande do Sul, e não
por acaso, estabeleceu uma súmula dizendo que, havendo a decisão de segundo grau, manda-se para a cadeia. Então a partir daí, nós dissemos: “Erramos a mão”.
P. Em sua opinião, qual o futuro da Operação Lava Jato?
R.
Eu não sei se é ainda necessária. Ainda tem corrupção na Petrobras?
Quais são os casos? O que remanesce? Porque eu tenho a impressão de que a força-tarefa é uma medida excepcional para situações excepcionais.
No mais tem que funcionar com a rotina, com o número de procuradores e
uma Procuradoria normal. Atividade normal, um juiz normal, que não
estabeleça relações promíscuas com os membros. O juiz é um órgão de
controle, ele não é agente de investigação. E esta confusão se
estabeleceu também por causa disso.
P. O conteúdo que se conhece hoje do The Intercept já está influenciando as decisões da Corte?
R.
Tenho a impressão que sim. É muito difícil ter elementos probatórios
inequívocos. Tenho a impressão de que há alguns "Josés" arrependidos por
aí.
P. O senhor é um desses "Josés" arrependidos?
R. Não,
não. Até porque, na verdade, estou gozando de uma posição bastante
curiosa. Em algum momento no trânsito de 2015, 2016, eu percebi que
havia algo de anormal com a concepção da própria Lava Jato.
P. Quando exatamente percebeu que havia algo errado com a Lava Jato?
R. É difícil dizer. Mas tenho uma cronologia das vezes em que falei sobre as prisões abusivas de Curitiba. Cheguei a dizer: temos um encontro marcado com as prisões alongadas de Curitiba.
Isso vinha chamando a atenção de que já estavam usando a prisão
preventiva não como uma prisão preventiva normal, mas com o objetivo de
obter confissões ou delações.
P. Houve algum fato específico que o fez concluir que alguns abusos estavam ocorrendo?
R.
Em termos políticos me impressionou bastante a investida que a Lava
Jato faz no campo legislativo, as tais 10 medidas [contra a corrupção]. A
coleta de dois milhões de assinaturas para levar ao Congresso. Isto não
foi ainda bem analisado, mas eram propostas visivelmente autoritárias.
Para citar duas delas: a que estabelecia a possibilidade de
aproveitamento de prova ilícita, feita de boa fé. E outra que acabava
praticamente com a concessão de habeas corpus. E uma pressão
enorme, usando do prestígio da força-tarefa, sobre o Congresso para que
se aprovasse aquelas medidas, num momento em que a política toda estava
muito debilitada. A mim me pareceu que ali estava um ovo da serpente.
Tanto é que comecei a falar muito fortemente contra as 10 medidas.
P. O senhor chegou a se manifestar a respeito?
R. Tive até um debate no Senado Federal, em que o Moro estava.
Vieram também juízes e promotores e eu falei claramente que o Congresso
precisava rejeitar as medidas. Mas isso é um processo. Quando, em 2017,
tivemos o debate da homologação do acordo do Joesley [Batista], eu fui
uma voz praticamente isolada. Na presença do [Rodrigo] Janot eu disse
que aquilo tudo era absolutamente anormal. E aqui também, como relator
de vários processos da Lava Jato do Rio, também estabeleci limites para
as prisões. Casos que felizmente foram confirmados pela Corte, pela
nossa Segunda Turma. Em suma, fui ganhando a ideia de que no combate a
corrupção tinha desvios.
P. Estamos
falando sobre abusos que acontecem com uma classe privilegiada, sua
maioria homens brancos e ricos. Mas não sentimos essa pressão
institucional por melhoras quando falamos dos mais pobres. Até quando
este debate vai ficar segregado?
R. Eu acho que é uma ilusão quando as pessoas dizem que agora estamos prendendo os ricos,
ainda que de forma abusiva, e isto faz justiça em relação aos pobres.
Acho uma ilusão. Dar licença para cometer abusos contra os ricos
significa dar licença ainda mais intensa para ferir os pobres.
P. Mas para os pretos e pobres essa licença já existe.
R.
Mas certamente isso agrava. Se não há limites em relação aos ricos, não
haverá em relação aos pobres. E é importante, por exemplo, o trabalho
que faz aqui a Defensoria Pública da União, que traz casos interessantes
como aquele sujeito que é tipificado como traficante, mas que podia ser
qualificado como usuário; ou o sujeito que entra no tráfico porque tem
que sustentar seu próprio vício. A gente vê que a jurisprudência que vem dos tribunais é muito mão pesada.
E tentamos atenuar um pouco. As próprias condições dos presídios. Os
calabouços estão cheios de pretos e pobres. Por isso, a gente tem que de
fato olhar de forma muito clara para essa temática. O Direito vale para
pobres e para ricos.
P. A prisão do Lula contribuiu para a instabilidade política do país?
R. Eu acho que a prisão do Lula só é viável num contexto de total destruição do sistema político,
e é isso que a Lava Jato conseguiu. Nada foi mais delirante que aquele
episódio do Joesley [Batista], onde o [procurador Rodrigo] Janot chega a
dizer que iria investigar ministros do Supremo. O STF permaneceu
intacto, mas o sistema num todo foi levado de roldão. O STJ foi levado
de roldão. De fato, se deu poder para gente muito chinfrim, muito ruim,
mequetrefe do ponto de vista moral e do ponto de vista intelectual. Foi
essa a combinação que produziu a mídia e esse empoderamento [do MPF].
P.
O senhor pediu vista no julgamento do recurso do ex-presidente Lula,
pedindo a suspeição do juiz Sergio Moro. Quando o STF vai voltar ao
tema?
R. Em novembro a gente volta nisso.
P.
O senhor já defendeu que prender provisoriamente com base em delação "é
erro crasso”. Teremos que voltar a discutir a legitimidade do
instrumento delação?
R. Eu tenho a
impressão de que o instrumento veio para ficar. É difícil pensar na sua
eliminação. Em determinado tipo de crime, em que não se tem indícios
evidentes, é preciso de, vamos chamar assim, uma prova um tanto quanto
heterodoxa. Agora, por ser heterodoxa nós temos que ter muito cuidado.
Por exemplo, agora mesmo o ministro Nefi [Cordeiro] do STJ declarou que a
delação feita de acusado ou investigado preso é algo equivalente a uma
tortura. É uma questão muito delicada. Um ex-senador, que esteve preso
por três anos em Curitiba, teria declarado a conhecidos seus que era
acordado na madrugada, convidado a fazer delação, e com os nomes
indicados. São práticas que nada têm a ver com o estado de Direito. E isso está ocorrendo sob às vistas de um juiz federal e sob o patrocínio de membros do MP.
Isso não é numa delegacia do interior do país. É algo bastante sério.
Por isso, precisamos pensar bem sobre o que vai ser reformulado no
ambiente da delação premiada, assumindo que se trata de um instrumento
importante. Até porque, o uso político disso é um aspecto que não
conhecíamos.
P. O vazamento dessas delações seriam um desses usos políticos?
R. Tenho falado com a imprensa quando vem falar do hackeamento e do episódio do Intercept.
Eu digo, e os vazamentos, que eram sistemáticos? A lei da delação
estabelece que, em princípio, só se revela o conteúdo da delação depois
do recebimento da denúncia. Portanto, depois de instaurado o processo
criminal. Não obstante, a Procuradoria encontrou uma brecha: colocava um
direito de renúncia do delator, que dizia que concordava com a
divulgação antecipada. E isso enchia o Jornal Nacional. Mas
veja, essa renúncia não faz sentido. O colaborador está renunciado só à
exposição em relação a ele mesmo. Mas está expondo todas as outras
pessoas que estão estão sendo delatadas. E nós mesmos talvez tenhamos
referendado – quer dizer, vários dos colegas aqui – referendamos esse
tipo de acordo, que violava a lei.
P.
Chama atenção que algumas delações que foram negociadas e rejeitadas no
MP acabaram sendo aceitas pela Polícia Federal. É confuso para os leigos
entender por que um instrumento vale para um lado e não para o outro?
R. Eu
não acompanhei a feitura do projeto de lei que resultou na colaboração
premiada. Mas o fato é que ela foi aprovada com a possibilidade de se
fazerem acordos junto ao MP e também junto à Polícia. Portanto, isso já
foi objeto de deliberação. Muito provavelmente, as próprias organizações
representativas dessas entidades atuaram [nessa discussão]. E claro,
tudo tem que ser submetido ao juiz, que é o órgão de controle para
referendar a delação e aceitar que as ações tramitem. O MP entrou com
uma ação aqui no Supremo arguindo a inconstitucionalidade da disposição
legal que o Congresso tinha outorgado à Polícia Federal. Mas nós
entendemos que a polícia também poderia fazer. A partir daí é discussão
de política criminal: “Ah seria melhor fazer com o MP, seria mais
ordenado”, ou “Nós temos muitas polícias e isso pode resultar em
problemas”. Mas, a mim me parece que, a par de não haver obstáculo na
Constituição, também houve uma lógica: não fortalecer por demais o
próprio MP, que já estava muito forte a esta altura. Acho que essa foi
uma razão. Claro que fica um tanto estranho o MP tendo rechaçado [uma
delação] e ela se estabelecer [com a Polícia Federal], como houve no caso conhecido do [Antonio] Palocci.
P. O senhor admite que a segunda instância foi um erro. Quais outros erros da Corte tiveram impactam na Lava Jato?
R.
Eu tenho impressão de que a Corte ficou submetida a essa pressão que a
mídia e a Lava Jato exerceram. Tanto é que, por exemplo, a presidente
anterior, a Carmem Lúcia, não pautou o ADC [que decidiria a prisão em
segunda instância] naquele momento que se reclamava. Pautou o habeas corpus
do Lula, sabedora ela que a ministra Rosa Weber tinha posição
divergente e julgaria de uma forma num caso e de outra em outro. Nem
vejo razões para isso, mas ela fez a opção por julgar o habeas corpus. E isso atendia, obviamente, à mídia dominante
—não vou dizer opressiva porque o Tribunal não deveria se sentir
oprimido por isso. Mas, de fato, isso ocorreu. E toda essa violência que
se estimulava contra os ministros. A discriminação que se fazia entre
aqueles que aplaudiam a Lava Jato e aqueles outros. Isso é notório. E
claro que causa incômodo. Além do bom senso, uma matéria muito mal
distribuída no mundo é coragem. E isso a gente vê que nem todos
dispunham. As pessoas têm todas as garantias, mas as pessoas têm medo.
P. Do que um ministro do STF precisa ter medo?
R.
É uma coisa quase de inata. Isso existe, as pessoas não querem ter
incômodos e elas passam a ter, não é!? Há funções muito mais
gratificantes, treinador de futebol.
Diretor de TV. Minha mulher brinca dizendo que o filho dela é
arquiteto, que a atividade é extremamente legal, porque, em geral, só
leva felicidade. Mesmo que o projeto não agrade. Mas a gente sempre
desagrada. No mínimo, a gente desagrada 50%, ou um grupo. E quando isso é
massificado, obviamente isto nos impõe desgastes. Mas é claro, vocês
podem sempre dizer: “Poxa, vai exercer uma outra função se não têm
coragem”.
P. Faltou coragem para a Corte
quando houve pressão, na véspera do julgamento do habeas corpus do
Lula, com o tuíte do general Villas Bôas dizendo que o Exército está “atendo às suas missões institucionais” e que repudiava a “impunidade”? Qual a pressão que os militares exercem no Supremo?
R.
Não acho que tenha exercido pressão. Tanto é que o ministro decano,
Celso de Mello, respondeu de forma muito categórica, repudiando qualquer
tentativa de tutela da Corte. Mas veja que esses movimentos que estão
aí e que são agora investigados neste inquérito [das fake news],
aparece a tal leitura do artigo 142 da Constituição, que diz que as
Forças Armadas são importantes e que podem ser utilizadas em defesa dos
poderes, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. E alguns fazem
uma leitura extravagante como se as Forças Armadas pudessem ser
colocadas a serviço de um movimento geral para fechar o Supremo.
P. O senhor já se mostrou crítico de operações policiais. Qual a mais problemática?
R.
No campo econômico, a Carne Fraca. Parece uma coisa de gente
tresloucada. Eu brinco, de vez em quando, que o Brasil cresce à noite,
porque durante o dia a gente se incumbe de derrubar, de contaminar o
PIB. A coisa da Carne Fraca é impensável na Espanha, em Portugal, na
Suíça, nos EUA, em qualquer outro lugar. Um sujeito faz uma operação em
relação a uma empresa, que tinha alguns problemas, e vende aquela ideia
de que nós estamos vendendo carne fraca, carne com papelão para o
exterior. Se é uma coisa que temos abundante, de boa qualidade é a
carne. Isso é 30% do PIB. Um juiz do interior, um procurador do interior
do Paraná e um delegado arrebanha 1.200 auditores para fazer esta
operação, que causou um grande tumulto, num contexto de dificuldade
econômica. Esta gente viu Deus, quer dizer, deslumbrou-se. Outro caso, que é chocante e terminou com a morte do reitor [Luiz Carlos Cancellier, da UFSC].
Imputavam a ele um desvio de 80 milhões de reais. E depois se descobre
que valor investigado era na época em que ele não era reitor da
universidade. Preso, exposto e se suicida [em outubro de 2017, após a
Operação Ouvidos Moucos]. Temos um festival de abusos em nome do combate
à corrupção.
P. O senhor foi membro do Ministério Público e hoje é um grande crítico da instituição. O que mudou?
R.
Eu tenho a impressão de que o Ministério Público talvez seja a
instituição que saiu mais forte do processo constituinte. Ela era uma
instituição que já tinha um papel importante, tínhamos muitos
procuradores que chegaram ao Congresso por eleição e tiveram
representatividade no processo constituinte. Especialmente no Ministério
Público Estadual, tinham uma militância, vamos assim chamar, talvez por
conta da proximidade com temas sociais, juventude, criança. No plano
federal, fazíamos a um só tempo a atividade do Ministério Público,
portanto, a tradicional, mas também a defesa da União em Juízo. E
estávamos divididos. Não sabíamos o que era melhor para a instituição. O
Ministério Público Estadual defendia a total separação entre as funções
e foi o que acabou prevalecendo. Mas o Federal saiu com um acréscimo, a
escolha do procurador-geral no âmbito da classe [a lista tríplice,
prevista na Constituição]. O fato é que o MP sai muito forte, ganha essa ideia de autonomia, se equipara ao Judiciário.
A própria legislação vai ser moldada por sua vontade. Não vai haver
controle. O papel que o MP vai ter em episódios como o impeachment do
presidente Collor vai ser central para essa discussão. O MP fica sem um
órgão de controle. Ele passa a ser um órgão mais ou menos autônomo.
P. Mas não seria o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) o órgão de controle?
R. Só vem depois, em 2004. Portanto, vamos ficar muito tempo sem um órgão de controle.
Porque o juiz, se ele decide desta ou daquela maneira, ou se ele tem
uma conduta inadequada, eu reclamo para o Tribunal, que tem uma
corregedoria. No caso do MP, eles também instituíram uma corregedoria,
que vai funcionar de uma maneira um tanto quanto flácida, muito menos
efetiva. O ato do juiz está submetido a um tribunal. Já o promotor,
dificilmente se ele abre um inquérito – e não submete a Juízo –, esse
ato dele é suscetível de revisão. Nós acabamos mimetizando em termos
institucionais, nós mesclamos. Demos o mesmo status e o mesmo modelo
para juízes e promotores. E a partir daí fomos tendo vários episódios em
que esse poder só cresceu.
P. O senhor já falou sobre o aumento de poder dos promotores, poderia dar um exemplo desses episódios?
R. Eu vi o documentário da Petra Costa, Democracia em Vertigem,
e ali tem marcos interessantes. Ela fala de 2013, da lei de delação
premiada. O Governo Dilma adota aquilo como uma solução, uma saída
política. E quem estava por trás desta lei? O Ministério Público, gente
como o [juiz Sergio] Moro. E o Governo acabou adotando aquilo. Até hoje
políticos vêm me contar que a presidente Dilma exigia que o projeto
fosse aprovado, como uma tentativa de qualificar o Governo junto a esses
interlocutores, que se diziam combatentes da corrupção. E nós hoje
sabemos como isso foi usado. É um importante instrumento de combate à
corrupção, mas pode servir para perversões. E as próprias informações
que vêm do Intercept mostram que muitas dessas delações foram
obtidas a fórceps, com uso de métodos impróprios, inadequados, ilícitos,
ilegais. Isso mostra que a lei não tem as devidas salvaguardas. Esse
fortalecimento institucional sem controle tem um significado: corrupção.
Se a gente somar esses episódios que o Intercept revela, se a
gente somar com os episódios [Marcelo] Muller da Procuradoria [acusado
de receber propina para ajudar grupo J&F], e se nós somarmos com o episódio da Receita, nós estamos aprendendo o quê? Aprendendo que sem controle, teremos instituições corruptas.
conteúdo
Carla Jiménez
Regiane Oliveira
Brasília
El País
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