O primeiro dia de julgamento de três ações que, em tese, podem resultar na soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de outros 4.894 detentos brasileiros acabou sem que todos os advogados que estavam previstos para se manifestar falassem. Dos 17 que se inscreveram para usar a tribuna, dois tiveram seus discursos adiados. O julgamento deve ser retomado na manhã da próxima quarta-feira, durante uma sessão extraordinária. A expectativa é de que a análise das ações declaratórias de constitucionalidade 43, 44 e 54 seja concluída em até mais quatro sessões.
Ao longo de quase quatro horas, os ministros quase não falaram. Só o presidente da Corte, Dias Toffoli,
e o relator do caso, Marco Aurélio Melo, se manifestaram. Tentando
passar a impressão para a opinião pública de que pautar o julgamento
para esta semana não teve um critério político, Toffoli ressaltou que
“presente julgamento não se refere a nenhuma situação particular.
Estamos diante de ações abstratas de controle de constitucionalidade”.
Afirmou ainda que o resultado dessas sessões dará “o alcance efetivo e a
interpretação a um dos direitos e garantias individuais previstos em
nossa Constituição Federal”. Era uma clara tentativa de desvincular o
caso do que envolve o ex-presidente Lula.
O
objetivo do Supremo é acabar com interpretações dúbias do artigo 283 do
Código de Processo Penal, que trata especificamente do cumprimento de
pena. Diz o dispositivo: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em
julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de
prisão temporária ou prisão preventiva”.
Já Marco Aurélio apenas leu o seu relatório,
que é uma síntese dos argumentos apresentados pelos autores das ações, e
fez piada sobre um boato que o envolvia. Na manhã desta quinta-feira,
circulou a informação de que a sessão seria suspensa porque o relator
estava passando mal e teria sido atendido no serviço médico do STF. O
que ele, de pronto, negou. No início de sua fala, contudo, fez troça.
“Ao fim, ressuscitado. Hoje pela manhã, me disseram que eu estava em um
hospital, entubado e que já teriam chamado um padre para a extrema
unção. Uma observação, senhor presidente, isso jamais ocorreria”.
Antes de usarem a tribuna nesta quinta-feira, os advogados se reuniram para traçar uma estratégia.
Ora os discursos se repetiam, ora se complementavam. Com exceção dos
advogados do Patriota, os demais pediram que o Supremo reveja a decisão
de 2016 que permitiu a possibilidade de cumprimento de pena após
julgamento em segunda instância.
Os mais contundentes foram o do advogado José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça de Dilma Rousseff,
que falou em nome do PCdoB, Lênio Streck, que se manifestou em nome da
Associação Brasileira de Advogados Criminalistas, Antônio Carlos de
Almeida Castro (o Kakay), do Instituto de Garantias Penais, Silvia
Souza, da Conectas, e Leonardo Sica, da Associação dos Advogados de São
Paulo.
Cardozo reclamou dos argumentos
que os defensores do cumprimento da pena após condenação em segunda
instância são falaciosos. Um dos debatidos por ele foi o de que
dificilmente as decisões de segundas instâncias são revistas nas cortes
superiores. Um levantamento do STJ mostra que menos de 1% das
condenações que chegam à Corte são revertidas e o réu é absolvido.
“Seres
humanos não são insumos econômicos... Um médico que, após salvar
milhões de vidas, cometa um erro, uma imperícia em uma cirurgia, perde
sua licença. O Judiciário não pode ser avaliado por outra regra. Pode
ter prendido muito bem, mas se prende alguém destruindo a sua vida, tem
de ser recriminado”. E acrescentou: “Não importa o número, são vidas
humanas, não é gado. Não estamos falando de arrobas de carne. Estamos
falando de vidas destruídas”.
Em outra frente, o
ex-ministro de Dilma tentou convencer os magistrados de que o senso
comum e a pressão popular não devem ser levadas em conta na hora de
julgar. “Fosse o senso comum valer, venhamos abolir os tribunais e vamos
transformar a Justiça naquelas arenas romanas, em que o imperador dizia
sim ou não. É assim que nós vamos tratar os seres humanos? Estamos em
um Estado de direito e como tal, devemos respeitá-lo”.
Já
Lênio Streck pediu que os ministros fizessem a “coisa certa”. “Fazer a
coisa certa é julgar com responsabilidade política sem politizar o
direito”. Streck disse que era preciso chamar o VAR (recurso do árbitro
de vídeo do futebol) para decidir a questão, já que ministros distintos
têm interpretações distintas sobre a prisão após a segunda instância.
Kakay,
que era o advogado do Patriota quando se iniciou a ação, em 2016, disse
que foi retirado do caso pelo partido quando a legenda convidou Jair Bolsonaro,
então pré-candidato à presidência da República a se filiar. Diz ter se
sentido honrado com a perda do caso, já que o partido mudou o seu
entendimento e passou a defender a prisão após a segunda instância. Na
sua fala na tribuna, o defensor abusou das frases de efeito. Uma delas:
“Vivemos em um tempo em que cumprir a Constituição passou a ser um ato
revolucionário”.
Entre a estratégia dos advogados havia
uma de tentar passar para a opinião pública a imagem de que não só
criminosos de colarinho branco seriam beneficiados pela mudança de
entendimento do Supremo. É nesse contexto que Silvia Souza, uma advogada
negra da ONG de direitos humanos Conectas, ocupou a tribuna para
defender essa tese. Disse Silvia: “É preciso reconhecer que a restrição
de direitos, sejam econômicos, sociais ou as liberdades, atinge em
primeiro lugar e com muito mais força a população pobre, preta e
periférica. Aqueles que pouco aqui são ouvidos e representados, haja
vista eu ser a única mulher negra, a única pessoa negra a ocupar essa
tribuna”. E seguiu: “Os corpos negros estão nas valas, estão
empoleirando as prisões em condições subumanas, em condições
insustentáveis”
Já Leonardo Sica destacou o que entende ser uma confusão normativa criada pelo STF
quando decidiu que é possível cumprir pena após condenação em segunda
instância. “Desde a decisão de 2016 instalou-se o caos normativo”. Um
exemplo dado por ele: “A pena alternativa não pode ser executada, mas a
de prisão pode”. Sica ainda reclamou do movimento judiciário de ouvir a
opinião pública mais do que se embasar somente nas leis. “O senso comum
escreveu as piores páginas da Justiça penal”.
Mesmo sem
ter se manifestado oralmente, o que deverá ocorrer apenas na próxima
semana, a Procuradoria-Geral da República afirmou, por meio de um
memorial — um resumo de seu posicionamento anexado ao processo — "que a
execução da pena após condenação em segunda instância é constitucional,
não ofende a presunção de inocência e deve ser preservada". Um dos
argumentos é de que dificilmente as penas impostas pela segunda
instância são revertidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
“Apenas em 0,62% dos recursos especiais interpostos pela defesa ao STJ
houve reforma da decisão de segunda instância para absolver o réu”. No
entendimento do órgão, o início do cumprimento da pena após o julgamento
de todos os recursos só privilegiará réus ricos, a maioria deles
condenados por crimes de colarinho branco. Em tese, seriam eles quem têm
mais condições de recorrer para dificultar ou até mesmo impedir o
trânsito em julgado das condenações.
conteúdo
Afonso Benites
Brasília
R. Borges
São Paulo
El País
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