Nos últimos anos, a agricultora Maria Aparecida Pereira da Silva, de 45 anos, tem se desdobrado para chegar ao fim do mês com as contas pagas. Silva, que mora no Cedro, na região Centro Sul do Ceará, a 400 km de Fortaleza, consegue ganhar mensalmente cerca de 400 reais com a venda de frutas e verduras, como mamão, maracujá e pimentão, que planta na horta da sua casa e da vizinha. Desde março, no entanto, é a pensão recebida pela morte do marido, falecido em janeiro, que tem ajudado ela e os dois filhos (18 e 19 anos), a terem uma qualidade de vida um pouco melhor.
O casal já não morava mais junto, mas ela e os filhos continuavam legalmente com o direito de receber o benefício no valor de 998 reais, um salário mínimo. "Desde que conseguimos, a situação melhorou muito", explica Silva. Atualmente, um de seus filhos cursa enfermagem e outro está estudando para tentar o vestibular em letras. "Eles não trabalham ainda, então realmente o dinheiro é pouco para os três", explica.
Silva tem acompanhado pouco as notícias sobre as mudanças propostas pela reforma da Previdência, uma das principais bandeiras do Governo de Jair Bolsonaro,
mas espera que um dia consiga se aposentar como agricultora.
Concretizar este plano, entretanto, ainda deve demorar, no mínimo, uma
década. "Até lá, tenho que ir muito tempo para roça para me manter",
diz. Também é provável que, quando o dia chegue, as regras para que ela
obtenha a aposentadoria também mudem. O texto-base da reforma aprovado em primeiro turno pela Câmara dos Deputados,
em julho, prevê cortes no pagamento em caso de acúmulo de benefícios.
Quem hoje já acumula os dois benefícios não será afetado. Mas os que
atualmente são pensionistas, como a agricultora, e no futuro irão se
aposentar —ou vice-versa— serão atingidos pelas novas regras.
Segundo as alterações, o benefício de menor valor é o que
sofrerá desconto. Caso ele seja de até um salário mínimo, o segurado
receberá 80% do valor —ou seja, quem receberia exatamente 998 reais
passa a ganhar 798 reais. Com as mudanças, caso a agricultora Maria
Aparecida, por exemplo, consiga aos 55 anos sua aposentadoria rural de
um salário mínimo, ao invés de conseguir somá-lo ao salário já recebido
pela pensão do marido, ela teria o desconto previsto. Na prática, ao
invés de receber, nos valores de hoje, 1.996 reais no total, ela teria
1.796 reais por mês —200 reais a menos por mês, que, em um ano, tirariam
da família 2.400 reais.
O cálculo, porém, é um pouco mais complexo para os valores
acima de um salário mínimo, pois passam a ser escalonados. Para
benefícios de um até dois salários mínimos, calcula-se 60% do benefício,
além dos 80% que já incidiram sobre o primeiro salário. Ou seja, na
parcela referente ao primeiro salário, se recebe 80% do valor (798
reais) e no restante, 60%. Quem ganha, por exemplo, dois salários
mínimos (1.996 reais), receberá os 798 reais, mais 598 reais referentes
aos 60% do segundo salário (um total de 1.396 reais). E esta conta
segue, sempre escalonando, para os seguintes valores. Entre dois e três
salários, soma-se 40% do benefício, entre 3 e 4 salários, 20% e acima de
4 salários, 10%.
Viúvas com menos de um salário mínimo
Além da mudança relacionada ao acúmulo de benefícios, a reforma propõe uma polêmica alteração no valor das pensões, que hoje corresponde ao valor integral. Segundo o texto, o pagamento para o principal beneficiário será de 60% do valor original da aposentadoria, mais 10% por dependente. Com a nova regra, o pensionista poderá receber menos de um salário mínimo, o que não acontece atualmente.
Esse seria, por exemplo, o caso da agricultora Maria
Aparecida, se o novo texto já estivesse em vigor. Como ela tem dois
filhos, ao invés de receber uma pensão de um salário mínimo, como
acontece hoje, ela receberia 60% do valor correspondente mais 10% de
cada um dos dois filho, o que levaria a uma porcentagem de 80% do
salário mínimo. Se não tivesse filhos, o valor seria ainda menor: 60% do
salário mínimo, ou seja, 598,80 reais.
A definição deste piso para pensão por morte foi
uma das alterações mais criticadas pela oposição, que defendeu que se
garantisse, ao menos, um salário mínimo. Após forte pressão da bancada
feminina e evangélica, os parlamentares fizeram uma alteração
para permitir que o benefício não seja menor que o mínimo, caso o
dependente não tenha outra renda. Já se houver, a pensão poderá
continuar sendo menor que 998 reais.
Para Adriane Bramonte, presidente do Instituto Brasileiro
de Direito Previdenciário, a medida é um retrocesso. "O salário mínimo,
como o nome diz, é o mínimo para a subsistência. Imagine, por exemplo,
se quando a mulher for pedir a pensão estiver em um trabalho
temporário. E que, dali a um mês, ela já esteja desempregada. Ou se ela
ganhar uma renda muito pequena, de 100 reais. Essa regra fará com que
ela perca quase metade do benefício", explica. Na avaliação de Bramonte,
há uma desconexão com a realidade. "Não precisava disso, não é esse
corte de 400 reais da população mais pobre que irá resolver o déficit da
Previdência", afirma Bramonte que acredita que a regra irá gerar muitas
ações na Justiça.
De acordo com a equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes,
as mudanças nas regras da pensão devem garantir uma economia de 128
bilhões de reais em uma década, quase 15% do impacto total da reforma. O
valor é alto, mas representa, para efeitos de comparação, apenas 33% a
mais do que poderia ser economizado caso o Governo deixasse de dar
isenção tributária para a produção agrícola exportada. Se o benefício
dado aos ruralistas acabasse, entrariam nos cofres públicos cerca de 86
bilhões de reais em dez anos. A proposta de mudança nesta isenção chegou
a ser colocada na reforma, mas após pressão do grupo mais influente do Congresso, a bancada ruralista, a medida caiu.
Hoje, as pensões por morte previdenciárias representam um
quarto dos benefícios concedidos no regime geral e têm um valor médio
de 1.687 reais. São as mulheres, mais especificamente as viúvas e órfãs,
as mais contempladas (83%).
"Acho que para nós, que ganhamos pouco, essas mudanças são
injustas. Vamos receber ainda menos e pode ser que no futuro a gente nem
receba mais. Não podemos nos desesperar, a gente vai fazendo o que
pode, mas vejo um futuro complicado para o Brasil", opina a pensionista
Carolina Viana, de 55 anos.
Desde março, ela recebe pensão por morte do marido, no
valor de um salário mínimo e meio. O dinheiro é essencial para sustentar
a família, composta por uma filha de 20 anos que tem deficiência. A
renda das duas também é complementada pelo trabalho de diarista de
Viana, que mora na cidade de Porto Feliz, a 90 quilômetros da capital
paulista. Ainda que tenha um emprego informal, Viana paga mensalmente o
INSS. "Pago por prevenção, no caso de que eu tenha alguma doença, e
espero conseguir depois uma aposentadoria, ainda que seja menor". Para a
diarista, as novas regras impostas para as pensões "querem levar quase
metade do salário". "As pessoas vão ter que pensar numa aposentadoria
privada, o que é viável para cada um, porque as regras estão só
dificultando". conclui.
Brasil tem média alta de gastos com pensões
Na avaliação de Luis Henrique da Silva de Paiva,
coordenador de Estudos e Pesquisa em Seguridade Social do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os gastos exagerados com a
Previdência têm reduzido as despesas com políticas sociais, que protegem
a população mais vulnerável. E, segundo Paiva, as pensões são hoje uma
grande parte das despesas do regime previdenciário brasileiro. "O Brasil
gasta 20% dos gastos sociais com esse tipo de benefício, mas se você
olha os países europeus, você verificará, no máximo, 10% com pensão por
morte", diz.
A tendência dos países desenvolvidos, de acordo com Paiva, é
tentar limitar o tempo que você pode usufruir da pensão e também o
valor. "É comum reduzir o acesso, principalmente, de idades muito
precoces. No Governo de Dilma Rousseff, por exemplo, uma lei determinou
que a pensão vitalícia fosse apenas a partir dos 44 anos", explica. Para
Paiva, já que não vamos mudar todo o sistema da Previdência, como seria
o caso se a proposta de capitalização tivesse vingado, o caminho mais
indicado é este proposto pela reforma.
O economista Nelson Barbosa, ex-ministro do Planejamento do
Governo Dilma, também concorda que hoje o valor de reposição da pensão é
relativamente alto e ressalta que já tinha proposto em 2015 que os
valores das pensões fosse de 50% do benefício, acrescido de 10% para o
dependente. A diferença, segundo ele, é que a proposta defendia que
nenhuma pensão fosse menor que um salário mínimo.
Em artigo escrito para FGV,
o ex-ministro defende que a decisão da Câmara de preservar o mínimo
apenas se a família beneficiado provar que não tem outra renda formal
tem lógica apenas quando tivermos um sistema integrado da renda de todos
os beneficiários de transferências sociais do Governo. "Enquanto isso
não acontecer, criar condição adicional para acessar pensões de um
salário mínimo aumentará o custo operacional do benefício, além de
incentivar a omissão de renda por parte de uma parte dos segurados",
escreve Barbosa. Na avaliação do ex-ministro, a solução mais simples
teria sido manter o piso das pensões em um salário mínimo, deixando a
revisão desse valor para uma lei específica, quando o INSS desenvolver
um sistema de monitoramento e cruzamento de dados.
conteúdo
Heloisa Mendonça
São Paulo
El País
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