“Caros. O barraco tem nome e sobrenome. Raquel dodge”. A frase, escrita pelo procurador Januário Paludo a seus colegas da Operação Lava Jato
em um chat do Telegram em 11 de março deste ano, é emblemática da
cáustica avaliação que a força-tarefa de Curitiba tem da
procuradora-geral que os comanda. As conversas dos procuradores,
enviadas ao The Intercept por uma fonte anônima e analisadas em
conjunto com EL PAÍS, apontam que Dodge, o posto mais alto do
Ministério Público, era vista como uma espécie de inimiga interna pela
própria operação.
E que os procuradores chegaram a discutir a
possibilidade de repassar informações secretamente a jornalistas para
pressioná-la a liberar ao STF delações, entre elas, a de Léo Pinheiro,
da construtora OAS, uma testemunha-chave de casos que incriminam o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.A relação estreita que, de acordo com os procuradores, existe entre Gilmar Mendes e Raquel Dodge é o cimento que constrói o muro de desconfiança e desdém que separa Curitiba da procuradora-geral da República. É um sentimento que vem desde o começo da gestão dela, em setembro de 2017. Em 20 de junho daquele ano, dias antes de Dodge ser apontada para o cargo pelo então presidente Michel Temer, Dallagnol diz aos colegas: “Bastidores: - Raquel Dodge se aproximou de Gilmar Mendes e é a candidata dele a PGR", escreve o procurador. Em outra conversa, já em 2018, o coordenador da Lava Jato afirma que Dodge só não confronta Mendes porque “sonha” com uma cadeira no Supremo assim que seu mandato na PGR terminar. A suposta aproximação com o ministro do STF, no entanto, é só uma das queixas da Lava Jato de Curitiba com Dodge. Para os procuradores liderados por Dallagnol, a procuradora-geral é um obstáculo incontornável também por ser dona da caneta que tanto libera orçamento à força-tarefa como envia ao Supremo os acordos de delações premiadas que envolvem autoridades com foro privilegiado, como a de Léo Pinheiro. Curitiba depende de Dodge de uma forma ainda mais fundamental: já em contagem regressiva para deixar a PGR em 17 de setembro, é ela que determinará se a força-tarefa continuará existindo no ano que vem, uma vez que a atual autorização expira em 9 de setembro.
No mapa dos embates entre Brasília e Curitiba, o que mais
aparece nas mensagens como um ponto nevrálgico dessa relação é a
morosidade de Dodge para homologar os acordos de delação, o combustível
que manteve a Lava Jato acesa durante seus cinco anos. Peças-chaves da
investigação, como Léo Pinheiro, o empreiteiro da OAS que incriminou o ex-presidente Lula
em sua primeira condenação, o caso do triplex, ainda não tiveram suas
delações validadas pelo STF. Assinado em dezembro de 2018 com a PGR, o
acordo de Léo Pinheiro não foi, até hoje, enviado por Dodge ao Supremo.
Procurada, a assessoria de imprensa da PGR afirmou que
"não se manifesta acerca de material de origem ilícita" ou sobre acordos
de delação, "que possuem caráter sigiloso". A força-tarefa da Lava Jato
também afirmou à reportagem que não faria comentários. Em outras
ocasiões, disse que "não reconhece as mensagens que têm sido atribuídas a
seus integrantes nas últimas semanas. O material é oriundo de crime
cibernético e tem sido usado, editado ou fora de contexto, para embasar
acusações e distorções que não correspondem à realidade".
Nos bastidores, discute-se que o empreiteiro da OAS teria
citado membros do STF em seu relato, e que a procuradora-geral planeja
postergar a decisão para a próxima gestão. "Russia acabou de perguntar
se evoluiu LP", questionou o procurador Athayde Ribeiro Costa, no chat
OAS-Curitiba–acordo, em 28 de junho de 2018. Ele se referia a um
questionamento do juiz Sergio Moro, apelidado de Russo pela
força-tarefa, sobre a delação de Léo Pinheiro. “Pessoal, advogados de
outros potenciais colaboradores ligando querendo saber da evoluçao das
negociaçoes. Brasilia precisa resolver nossas pendencias, senao esse
povo todo vai fazer acordo com a PF”, respondeu a procuradora Jerusa
Viecili, referindo-se ao fato de que as defesas poderiam buscar a
Polícia Federal diretamente para fechar uma delação premiada. Neste e em
outros diálogos, o EL PAÍS optou por manter todas as frases com a
grafia original, sem nenhuma edição.
No chat, os procuradores reclamam que Dodge sairia de
férias entre 3 e 17 de julho, sem resolver "pendências" relacionadas ao
acordo. Pela agenda publicada no site do MPF,
a procuradora, de fato, tirou férias no período: entre 4 e 18 de julho.
No dia seguinte, o coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol,
propõe aos colegas, no mesmo chat, pressionar Dodge “usando” a imprensa
“em off”, passando informação a jornalistas sem se identificar, uma estratégia várias vezes cogitada pelo procurador nas mensagens.
"Podemos pressionar de modo mais agressivo pela imprensa", propõe.
Outra opção era encostar Dodge contra a parede e apresentar um prazo
limite para o encaminhamento. "A mensagem que a demora passa é que não
tá nem aí pra evolução as investigações de corrupção, se queixa. “Da
saudades do Janot", encerra.
Os motivos da saudade do ex-procurador-geral ficam
evidentes nas mensagens entre Dallagnol e Rodrigo Janot. O antecessor de
Dodge mantinha uma relação bem diferente com o coordenador da
força-tarefa, ao menos nas conversas mantidas pelo Telegram. Em 16 de
julho de 2015, Dallagnol atribui a Janot o sucesso da Operação Politeia,
que cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços do ex-presidente
Fernando Collor (PTB-AL) e outros políticos com foro privilegiado.
“Janot, o maior diferencial é que Vc, por características pessoais,
permitiu que esse trabalho integrado acontecesse, a começar pela criação
da FT e todo apoio que deu e dá ao nosso trabalho. Vc merece um
monumento em nossa história. Grande abraço, Deltan", escreveu. O
coordenador da força-tarefa mostra nas mensagens uma relação mais
próxima com o chefe, a quem parabeniza por artigos publicados na
imprensa, convida para eventos, divide preocupações, responde
prontamente e agradece: “Obrigado por confiar em nós”, escreveu
Dallagnol em maio de 2016. Janot não se mostra tão entusiasta nas
respostas. Frequentemente, respondia com joinhas (👍👍👍).
No começo de abril de 2019, procuradores debatem
novamente a delação de Léo Pinheiro, mostrando que a relação entre Dodge
e a força-tarefa seguia tensa. Eles tentavam encontrar uma saída, para o
caso da procuradora-geral desistir do acordo. “Na ponta da faca, se ela
assinou cabe MS por omissão se ela não levar ao judiciário para
homologar”, escreve Antônio Carlos Welter. Leva a crer que ele levanta a
possibilidade de se questionar, por meio de um mandado de segurança
(MS), a mencionada omissão de Dodge. O procurador Athayde Ribeiro Costa
sugere que, por se tratar de um contrato, caso Leo Pinheiro tenha uma
cópia assinada, “pode levar a homologacao e dizer q os depoimentos estao
de posse do mp”, em referência ao Ministério Público.
Em várias oportunidades, a força-tarefa repete que Dodge “não
despacha nada” e “centraliza tudo” e reclamam da lentidão. De fato, as
ações da Lava Jato junto ao Supremo tiveram uma redução drástica desde
que a procuradora assumiu a PGR, em setembro de 2017. De acordo com
relatório liberado pelo ministro Edson Fachin em março deste ano, entre
2015 e 2018 foram homologadas 110 colaborações premiadas no Supremo.
Destas, apenas uma, a delação do lobista Jorge Luz —que afirma ter feito
pagamentos ao senador Renan Calheiros (MDB-AL), homologada em dezembro
de 2018—, foi feita sob a gestão de Dodge. “Em 2019, não houve
homologação”, afirma o documento."Confio que terá sabedoria para ouvir frustrações"
Se com Janot as conversas eram amistosas, com Dodge o coordenador da Lava Jato nunca chegou à liberdade dos emojis.
Pelo contrário. Em 12 de agosto de 2018, o estremecimento na relação
veio à tona de maneira direta no chat entre o procurador e a ocupante da
Procuradoria-geral. Sem trocar nenhuma palavra, Dodge apenas envia um
link para Dallagnol. Trata-se de uma nota publicada no jornal O Globo que afirmava que Dodge colecionava atritos com a Lava Jato.
Dentre os problemas, cita a nota, está não ter autorizado uma viagem da
força-tarefa à Suíça, onde se desenrola parte das investigações, e
também a falta de uma resposta dela quanto ao pedido de suspeição de
Gilmar Mendes feito pela equipe de procuradores do Rio.
No dia seguinte, Dallagnol responde à chefe negando passar
informações a jornalistas. "É uma pena que problemas dentro da
instituição acabem expostos na imprensa. Como lhe disse, não temos essa
prática de notas", afirma. Logo depois, não esconde a insatisfação.
“Várias pessoas interessadas tomaram contato com essa informação sobre a
negativa da ida para a Suíça, porque estavam interessadas, inclusive a
PF que já estava autorizada a ir conosco. Já quanto às infos do RJ,
tomei conhecimento pela nota”, escreveu. “Confio que terá sabedoria para
ouvir frustrações com serenidade, avaliar criticamente o que é
pertinente e usar isso para fortalecer os relacionamentos e o trabalho
que é de todos nós”.
Para além dos conselhos dados por Dallagnol à
procuradora-geral, as mensagens mostram que o descontentamento com Dodge
ultrapassa as trincheiras da Lava Jato. “Raquel está destruindo o MPF,
achincalhando a gente…[...] teria que ser incinerada publicamente,
internamente e internacionalmente”, desabafou o procurador Anderson
Lodetti, em abril deste ano, em um chat que reúne procuradores além da
força-tarefa. O motivo era Dodge ter se calado inicialmente, quando, em
abril deste ano, Alexandre de Moraes, do STF, ordenou buscas e apreensão
contra militares e procuradores no amplo inquérito sobre fake news.
Num passo criticado por especialistas, Moraes abre a investigação de
ofício, ou seja, por iniciativa própria e sem a participação do
Ministério Público.
Mas Dodge se insurgiria contra o STF, ainda que sem
sucesso, entretanto, nem isso seria suficiente para conciliar a
procuradora-geral com seus liderados. A ruptura sem retorno, ao menos
com a Lava Jato em Curitiba, parece ter acontecido em março deste ano,
quando Dodge decidiu sobre o futuro do dinheiro de multas pagas pela
Petrobras nos Estados Unidos. Dodge foi até o Supremo pedir a anulação
do acordo firmado entre os procuradores e as autoridades
norte-americanas que resultaria na criação de uma fundação para gerir os
2,5 bilhões de reais desviados por corrupção e devolvidos pela estatal
aos cofres públicos. Foi neste contexto que foi feita a afirmação do
procurador Januário Paludo, que abre esta reportagem. “O barraco tem
nome e sobrenome. Raquel dodge. O Oswaldo instaurou pgea para pedir
informações sobre o acordo”, disse o procurador no grupo Filhos do
Januário 4. Se referia ao Procedimento de Gestão Administrativa (PGEA),
uma medida administrativa utilizada pelo corregedor-geral do MPF,
Oswaldo Barbosa, para ter acesso aos documentos sobre o acordo.
A medida drástica da Procuradoria-geral veio depois que a força-tarefa negociou diretamente com a Petrobras e com autoridades dos Estados Unidos
que 80% da multa que a companhia teria que pagar pelos esquemas de
corrupção ao mesmo tempo que suas ações eram negociadas na bolsa de Nova
York ficasse no Brasil. O valor bilionário chegou a ser depositado em conta vinculada à 13ª Vara Federal de Curitiba,
em janeiro deste ano, pela companhia. Uma fonte que acompanhou os
bastidores, mas prefere não se identificar, avalia que neste momento, a
corda entre procuradores e a PGR foi arrebentada. “O tiro de canhão, que
realmente causou desgosto [nos procuradores] foi a ADPF [Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, instrumento utilizado por Dodge
para pedir ao Supremo a suspensão do acordo] contra a Fundação Lava
Jato”, disse. A argumentação da procuradora-geral era de que caberia à
União, e não aos investigadores da Lava Jato, decidir como o dinheiro
será gerido. Em defesa de Dodge, a fonte afirma que a procuradora-geral
só soube do acordo depois que ele já havia sido fechado. “É algo que
poderia ter sido resolvido dentro de casa, não precisava de uma ADPF”,
avalia, no entanto. O pedido de anulação foi acatado pelo Supremo.
Em meio a tantos dissabores, que nos grupos de procuradores
também aparecem como decepção pela forma como Dodge encampa ou não
demandas sobre benefícios e salários na carreira, a categoria também
olha para o futuro. "É chegada a hora de construir alternativas de
médio/longo prazo, porque o curto prazo será mais do que já temos. E o
café da RD já está sendo servido no palito de tão frio", diz o
procurador João Carlos de Carvalho Rocha, em dezembro de 2018, em
referência a Dodge. A gestão da procuradora-geral se encerra no dia 17
de setembro e agora o destino das grandes decisões do Ministério Público
está nas mãos de Jair Bolsonaro. Cabe ao presidente anunciar seu
sucessor, o que ele promete fazê-lo nos próximos dias e avisa que, pela
primeira vez em 16 anos, pode apontar alguém fora da lista tríplice dos
mais votados entre os procuradores. Caberá ao escolhido conseguir o que,
para Dodge, pareceu impossível: reconciliar a procuradoria-geral com a
Lava Jato.
conteúdo
Marina Rossi
Regiane Oliveira
Paula Bianchi (The Intercept)
São Paulo
Rio de Janeiro
El País
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