Eu quero começar lembrando onde nós estamos.
E
quero lembrar que nós estamos no centro do mundo. Essa não é uma frase
retórica. Também não é uma tentativa de construir uma frase de efeito.
No momento em que o planeta vive o colapso climático,
a floresta amazônica é efetivamente o centro do mundo. Ou, pelo menos, é
um dos principais centros do mundo. Se não compreendermos isso, não há
como enfrentar o desafio do clima.
Esta é justamente a
razão de colocarmos o nosso corpo aqui, nesta cidade, Manaus, capital do
Amazonas, estado do Brasil, país que abriga cerca de 60% da Amazônia.
Manaus é tanto uma floresta em ruínas como as ruínas de uma ideia de
país. Manaus pode ser vista como a escultura viva de um conflito
iniciado em 1500, com a invasão europeia que causou a morte de centenas
de milhares de homens e mulheres indígenas e a extinção de dezenas de
povos. Neste momento, em 2019, testemunhamos o início de um novo e
desastroso capítulo.
O Brasil é um grande construtor de
ruínas. O Brasil constrói ruínas em dimensões continentais desde que
começou a ser inventado pelos europeus no século 16. Neste momento, uma
forma de vida predatória chamada bolsonarismo assumiu o poder quase
total e totalitário no Brasil. O principal projeto do bolsonarismo é
justamente construir ruínas com método e com velocidade na floresta
amazônica. É por isso que pela primeira vez, desde a redemocratização do
país, temos um ministro contra o meio ambiente.
Nenhum ministro do meio ambiente dos últimos mais de 30 anos teve a autonomia que já demonstrou ter Ricardo Salles, o ministro contra o meio ambiente. Ele é o office-boy
do agronegócio predatório, este que é responsável pela maioria das
mortes no campo e na floresta e é também a maior força de destruição do
Brasil. Não é que hoje os ruralistas estão no Governo. No governo eles
estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles são o Governo.
O
principal projeto de poder do bolsonarismo é converter as terras
públicas que servem a todos, na medida em que garantem a preservação dos
biomas naturais e a vida dos povos originários, em terras privadas para
lucros de poucos. Estas terras, a maioria delas na floresta amazônica,
são as terras públicas de usufruto dos povos indígenas, as terras
públicas ocupadas pelos ribeirinhos (população que vive da pesca, da
coleta do látex, da castanha e de outros frutos da floresta há mais de
um século), e as terras de uso coletivo dos quilombolas (descendentes de
escravos rebeldes que conquistaram seu direito aos territórios ocupados
pelos antepassados).
As disputas entre os vários grupos que ocupam o Governo é constante, inclusive porque o Governo Bolsonaro
tem como estratégia simular sua própria oposição, ocupando todos os
espaços. A abertura das terras protegidas dos povos indígenas e a
abertura das áreas de conservação, entretanto, despontam como consenso.
Sobre transformar a maior floresta tropical do planeta em boi, soja e
mineração não há briga. Algumas das vozes levemente dissonantes já foram
deletadas do Governo.
O bolsonarismo vai muito além da
criatura que lhe dá nome. Eventualmente, em algum momento, o
bolsonarismo pode inclusive prescindir de Jair Bolsonaro. O
bolsonarismo, intimamente conectado à crise global das democracias, está
influenciando toda a região amazônica, fazendo com que figuras que se
mantiveram nos esgotos por anos, às vezes décadas, estejam hoje
emergindo em outros países da América Latina
onde também o destino da maior floresta tropical do mundo está sendo
decidido. O bolsonarismo, vale repetir, não é uma ameaça apenas para o
Brasil, mas para o planeta. Exatamente porque ele destrói a floresta
estratégica para o controle do aquecimento global.
Como resistir a essa enorme força de destruição, a essa competente força de destruição?
Para
sermos capazes de resistir nós precisamos nos tornar floresta — e
resistir como floresta. Como floresta que sabe que carrega consigo as
ruínas, que carrega consigo tanto o que é quanto o que deixou de ser. Me
parece que é a esse sentimento político-afetivo que precisamos dar
forma para dar sentido à nossa ação. Para isso temos que deslocar
algumas placas tectônicas de nosso próprio pensamento. Temos que
descolonizar a nós mesmos.
O fato de a Amazônia
ainda ser vista como um longe e também — ou principalmente — como uma
periferia dá a dimensão da estupidez da cultura ocidental branca, de
matriz primeiro europeia e depois norte-americana, essa estupidez que
molda e dá forma às elites políticas e econômicas do mundo e também do
Brasil. E, em parte, também às elites intelectuais do Brasil e do
planeta. Acreditar que a Amazônia é longe e que a Amazônia é periferia,
quando qualquer possibilidade de controle do aquecimento global só é
possível com a floresta viva, é uma ignorância de proporções
continentais. A floresta é o perto mais perto que todos nós aqui temos. E
o fato de muitos de nós nos sentirmos longe quando aqui estamos só
mostra o quanto o nosso olhar está contaminado, formatado e distorcido.
Colonizado.
Dias atrás eu conversava com procuradores e
defensores públicos que chegaram há pouco em cidades do interior
amazônico. Era o primeiro posto deles. Porque essa é a lógica. A
Amazônia é o epicentro dos conflitos, mas, para fiscalizar o Estado e
defender os direitos dos mais desamparados, as instituições mandam os
sem nenhuma experiência. Alguns deles — não todos — interpretam que
estão sendo enviados a uma região amazônica como um teste ou mesmo um
castigo, um calvário que precisam passar antes de ter um posto
“decente”. Parte deles — não todos — não vê a hora de ter o que é
chamado de “remoção” e deixar essa bad trip para trás. E não é
culpa deles, ou não é só culpa deles, porque essa é a lógica das
instituições, este é o olhar para a Amazônia. Felizmente alguns deles
percebem a importância do seu papel, aprendem, compreendem, permanecem e
se tornam servidores públicos essenciais para a luta pelos direitos em
regiões onde os direitos pouco ou nada valem.
Lembrei a
eles que, como eu, eram privilegiados. Eles estavam justamente no centro
do mundo. Eles estavam no melhor lugar para se estar para quem tinha
escolhido aquela profissão. Mas teriam que se esforçar muito para
superar a sua ignorância, como eu me esforço todos os dias para superar a
minha. Era a população local, eram os povos da floresta que teriam de
ter enorme paciência para explicar a eles o que precisam saber, já que
pouco ou nada sabem quando aqui chegam. O mesmo princípio vale para
jornalistas e também para cientistas.
Se nós nos
reunirmos aqui acreditando que somos especiais por estarmos preocupados
com a floresta, não teremos compreendido nada. Se nós compreendermos a
nós mesmos — nós jornalistas, nós cientistas, nós brancos para muito
além da cor da pele —, como aqueles que deixam o conforto de suas casas
em cidades “desenvolvidas” e supostamente com mais opções de lazer e
cultura para se solidarizarem com os povos da floresta, também não
teremos entendido nada. Se existe uma verdade ela está nas ruínas. A
única verdade são as ruínas.
Durante mais de duas
décadas, eu me desloquei para as diferentes regiões da Amazônia e depois
voltei para Porto Alegre, primeiro, depois para São Paulo, onde vivia.
Em 2017, me mudei para Altamira, para deixar de ser “enviada especial” à
Amazônia, mudar o ponto de vista a partir do qual eu olhava para o
Brasil e para o planeta e ser coerente com a convicção de que a floresta
é o centro do mundo.
Na chegada, tive dificuldades para
alugar uma casa. Algumas das que eu gostava pertenciam a grileiros e/ou
mandantes de crimes contra povos da floresta e pequenos agricultores.
Porque aqui, no centro do mundo, a relação é direta. Não é que os
proprietários de casas, apartamentos, hotéis e condomínios de São Paulo
sejam mais “limpinhos”, é que a cadeia entre o crime e a ponta é mais
longa e tem mais intermediários.
Nas grandes cidades do
Brasil e do mundo, somos afastados das mortes das quais nossos pequenos
atos cotidianos se fazem cúmplices, temos o privilégio de não sermos
obrigados a questionar a origem da roupa que vestimos ou a origem da
comida que comemos. Aqui, na Amazônia, se você come boi, tem certeza que
é boi de desmatamento. Se você compra madeira, sabe que (quase) não
existe madeira efetivamente legal no Brasil. Se você compra uma mesa ou
um guarda-roupa vai ficar olhando para esses móveis e pensando que muito
provavelmente eles foram feitos com madeira arrancada de terra indígena
ou de uma reserva extrativista. Aqui, no centro do mundo, a relação com
a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como com a morte dos
agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos viver
carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto nossas
ruínas.
Por isso, temos que enfrentar também a contradição de estarmos aqui, financiados neste evento, por recursos da Noruega.
A Noruega também sustenta majoritariamente o Fundo Amazônia, hoje sob
ataque do Governo de Bolsonaro. A continuidade do Fundo Amazônia,
principal financiador da proteção da floresta, é essencial para barrar,
ainda que minimamente, a destruição acelerada do bioma. Este fato não
nos absolve, porém, da necessidade de refletir que o Rainforest
Journalism Fund é financiado, em grande parte, por dinheiro proveniente
do petróleo,
já que a Noruega é o maior produtor de petróleo da Europa. A Noruega
tem ainda participação em frentes de destruição da Amazônia, como a
empresa Hydro Alunorte, que contaminou os rios de Barcarena, no Pará. Só
podemos seguir adiante enfrentando todas essas contradições — e não
fugindo delas. E exigindo melhores práticas e mais coerência da Noruega.
Por
caminhos diferentes, penso que nós estamos aqui, e não só os que vieram
de fora, mas também os que já se colocaram geograficamente aqui neste
território, porque sabemos que nossa vida depende disso. Mesmo que este
ainda não seja um sentimento — ou mesmo um pensamento — que todos possam
nomear. Não estamos aqui para ajudar os povos da floresta, contando o
que está acontecendo aqui para o mundo de lá, mas sim estamos aqui para,
humildemente, perguntar se eles nos aceitam ao seu lado na luta.
Somos
nós que precisamos da ajuda dos povos da floresta. É deles o
conhecimento sobre como viver apesar das ruínas. São eles os que têm
experiência sobre como resistir às grandes forças de destruição. Para
que tenhamos alguma chance de produzir movimento de resistência
precisamos compreender que, nesta luta, nós não somos os protagonistas.
Sem
compreender nosso lugar nessa luta e estarmos dispostos a compartilhar o
pouco poder que temos, ou mesmo ceder esse poder, acredito que será
muito difícil produzir movimento real. Desta vez, somos nós que
precisamos nos deixar ocupar, permitir que nosso corpo seja afetado por
outras experiências de ser e de estar neste planeta. Não como uma
violência, como foi a colonização da Amazônia e de seus povos, esta que
está em processo até hoje, e em processo cada vez mais acelerado. Mas,
desta vez, como troca, como mistura, como relação amorosa, como sexo
consentido.
Reproduzo aqui uma fala do filósofo Peter Pál
Pelbart, que faz essa síntese de forma brilhante: “Talvez o desafio
seja abandonar a dialética do Mesmo e do Outro, da Identidade e da
Alteridade, e resgatar a lógica da Multiplicidade. Não se trata mais,
apenas, do meu direito de ser diferente do Outro ou do direito do Outro
de ser diferente de mim, preservando em todo caso entre nós uma
oposição. Nem mesmo se trata de uma relação de apaziguada coexistência
entre nós, onde cada um está preso à sua identidade feito um cachorro ao
poste, e portanto nela encastelado. Trata-se de algo mais radical,
nesses encontros, de também embarcar e assumir traços do outro, e com
isso às vezes até diferir de si mesmo, descolar-se de si, desprender-se
da identidade própria e construir sua deriva inusitada”.
Durante
muito tempo nós, jornalistas e cientistas brancos ocidentais, e quando
me refiro a brancos ocidentais me refiro a muito além da cor da pele, me
refiro a um modo de pensar e de habitar esse mundo, usamos os povos da
floresta apenas como fontes do nosso trabalho. Cientistas de todas as
áreas, e também da área de humanas, fizeram sua carreira a partir do
conhecimento dos povos da floresta citando-os nos trabalhos acadêmicos
apenas como “informantes”, isso quando os citavam.
Embora
essa prática ainda seja largamente exercida na produção científica,
muitos já começam a compreender que já não é eticamente possível fazer
isso. Os povos da floresta precisam ser reconhecidos, no mínimo, como
coautores. Os intelectuais, assim como os cientistas, não se restringem à
academia. Os intelectuais e os cientistas estão também — e muito — na
floresta.
É isso que muitos intelectuais indígenas estão
dizendo no mundo inteiro neste momento. No Brasil, a obra mais
expressiva de coautoria entre um intelectual acadêmico e um intelectual
da floresta é A Queda do Céu, resultado de uma parceria
efetiva, real, de mútuo respeito e mútuo aprendizado, entre Davi
Kopenawa, intelectual yanomami, e Bruce Albert, antropólogo francês.
Talvez
o debate mais fundamental que precisamos empreender no jornalismo é
como esse desafio ético e também estético pode ocupar a produção
jornalística neste momento crucial. Como colaborar com os povos da
floresta para invadir e ocupar o jornalismo a partir de suas próprias
experiências — e não apenas se deixando formatar pelo nosso modelo de
imprensa. Esta, me parece, não deve ser apenas uma ocupação de espaço,
com indígenas, ribeirinhos e quilombolas fazendo jornalismo. Deve ser
também uma transformação do espaço, do próprio fazer jornalístico.
Uma
das maneiras de começar esse movimento no Rainforest Journalism Fund é
estimular a coautoria nos projetos de reportagem porque, a maneira mais
efetiva de ocupar os espaços de poder é... ocupando os espaços de poder.
E, de novo, devemos aceitar esse desafio não porque somos cool
ou por concessão ou por favor — e nem mesmo porque é o mais correto a
se fazer —, mas porque precisamos muito aprender e porque podemos
ensinar. Precisamos nos inventar de outro jeito se quisermos ter uma
chance de enfrentar este momento em que a espécie humana se tornou ela
mesma a catástrofe que temia.
Bolsonaro não é apenas uma
ameaça para a Amazônia. É uma ameaça para o planeta exatamente porque é
uma ameaça para a Amazônia. Diante desta força acelerada de destruição
que é o bolsonarismo nós, de todas as nacionalidades, precisamos fazer
como os africanos escravizados que se rebelaram contra o opressor.
Precisamos nos aquilombar. E, como não sabemos fazer isso, teremos que
ter a humildade de aprender com quem sabe.
O melhor — e o
mais potente — do Brasil atual e da Amazônia, em todas as regiões, são
as periferias que reivindicam o lugar de centro. Nossa melhor chance é
nos somar às forças do real centro do mundo onde a disputa pelo futuro é
travada, às vezes a bala.
É a esse movimento que nós,
jornalistas e cientistas, precisamos humildemente servir. Espero que os
povos da floresta possam, depois de tudo o que fizemos contra seus
corpos, nos aceitar ao seu lado na luta.
conteúdo
Eliane Brum
El País
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