Gosto de andar de ônibus dentro da cidade. Como jornalista, acho importante ver e ouvir as pessoas comuns. Quem usa o transporte público, por exemplo aqui em Colombo, costuma pertencer às classes menos favorecidas. São os sem-carro e os sem possibilidade de pagar um táxi ou um Uber. São também os que passam despercebidos.
Fui resolver uns assuntos e, ao voltar, duas horas depois, a
mulher ainda estava lá, sob o sol, esperando que alguém comprasse sua
pequena mercadoria. Olhava cada passante como o joalheiro perscruta
possíveis compradores de uma pedra preciosa. Já no ônibus, veio-me à
memória um comentário que Henrique Rocha Melo deixou dias atrás na
página deste jornal no Facebook.
Perguntava-se: “Se Jesus viesse hoje, seria chamado de comunista ou
seria recebido à bala pelos cidadãos de bem?”. A pergunta era
sintomática do clima político e religioso que se vive no Brasil, onde o
tema Deus foi colocado no centro do poder.
Refletindo sobre a pergunta do leitor, e com a imagem da
mulher dos três pacotes de quiabo ainda na minha retina, pensei que, se
Jesus estivesse voltando, como se anuncia às vezes até na traseira dos
caminhões de carga, teríamos uma surpresa. Não se trata de saber se
seria visto como comunista ou liberal. Sem dúvida, estaria do lado da
idosa tão pobre que precisa sair à rua para vender três punhados de
hortaliças.
Mas poderíamos nos fazer outra pergunta ainda mais
inquietante: se Cristo voltasse, ao lado de quem não estaria? A resposta
tampouco é difícil. Não andaria, sem dúvida, de braços dados com quem
permite que continuem existindo pessoas abaixo do nível de pobreza. Não
estaria ao lado dos que, como acaba de dizer o papa Francisco,
“melhor seria se fossem ateus em vez de irem à igreja e continuarem
odiando”. Odiando e também se esquecendo da caravana dos excluídos,
vítimas do novo capitalismo excludente que vai deixando um rio de
“inúteis” à sua passagem. É assim que o autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, Yuval Noah Harari, se refere em seu último livro, 21 Lições Para o Século 21, aos novos proletários da era da inteligência artificial, os que já não servem nem para consumir.
Alguém me perguntará com que direito escrevo que Jesus, se
voltasse, estaria do lado da mulher pobre dos quiabos e não dos que se
gabam de serem os donos de Deus. Digo isso à luz de evangelhos hoje tão
citados em templos e congressos neste país. Escrevo-o recordando como
Jesus se comportava com o poder, seja o político ou o religioso, quando
tramavam sua morte. Vou recordar apenas dois episódios emblemáticos
narrados pelos evangelhos canônicos, autorizados pela Igreja, que os
evangélicos e católicos devem conhecer muito bem.
Em Lucas 13, 31 e ss., os amigos de Jesus o
aconselham a ir embora da pobre e rural Galileia onde pregava, já que o
rei Herodes queria matá-lo. Não explicam o motivo do ódio do tetrarca
contra ele, mas fica claro na resposta de Jesus: “Ide, e dizei àquela
raposa que continuarei expulsando demônios e curando doentes”. Herodes
temia uma insurreição dos pobres e marginalizados que seguiam e
aclamavam o profeta.
Na outra passagem, narrada nos quatro evangelhos, é o poder religioso que enfrenta Jesus. Quando viajou à rica e intelectual Jerusalém
e entrou no Templo, notou que o local, que devia ser “casa de oração
para todas as gentes”, tinha se tornado um “covil de ladrões”.
Referia-se aos vendedores de animais para os sacrifícios dos fiéis
pobres, e também aos cambistas que traficavam com moedas. Foi a primeira
vez que o profeta da paz perdeu a paciência e “derrubou as mesas dos
cambiadores”. A reação foi imediata: “Os escribas e príncipes dos
sacerdotes, tendo ouvido isto, buscavam ocasião para o matar; pois eles o
temiam” (Marcos 11, 15 e ss.). Por que esse medo do poder frente ao
desarmado profeta dos últimos?
Hoje, mais de 2.000 anos depois, mais do que querer matar
Jesus, o que o poder no Brasil está fazendo é mais sutil e perigoso. É
apropriar-se dele, domesticá-lo, usá-lo para seus interesses. O perigo
de hoje é que Jesus, em vez de aparecer ao lado de quem precisa vender
algo na rua para sobreviver, pareça à vontade nos corredores onde se
cozinha a política. Ou nos templos onde se ensina aos humildes e aos
pouco escolarizados que Jesus está ao lado dos que triunfam, e não dos
perdedores.
Não sei se o profeta galileu, que acabou cravado em uma
madeira como um criminoso comum, era ou não anticapitalista. Certamente
era anticonsumista. Nem casa tinha. Não deveriam se esquecer disso os
religiosos que o profanam ao oferecê-lo como talismã aos governantes.
Mais do que nunca, o poder religioso deveria recordar aqui, no Brasil do
“Deus acima de todos”, que Jesus tinha pedido a seus seguidores que
separassem o trono do altar: “Deem a César o que é de César, e a Deus o
que é de Deus” (Lucas 20, 25). Misturar os dois poderes, colocar Deus
como fiador da impunidade, significa montar novas cruzes para poder
continuar sacrificando inocentes. A idosa que vendia três pacotes de
quiabo na rua, e o que ela simboliza, julga a todos, esquerda e direita,
cristãos e ateus.
Adaptação do
conteúdo de
Juan Arias
El País
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