Pezão, o discreto operador da máquina que tritura o Rio há décadas



As viaturas da Polícia Federal que deixaram o Palácio Laranjeiras carregando no banco de trás de uma caminhonete o governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, escreveram nesta quinta-feira o mais recente capítulo do roteiro que levou o cartão postal do Brasil do topo do mundo ao fundo do poço. Apenas dois anos após sediar de forma bem sucedida as Olimpíadas, o Rio assiste, pela primeira vez, a um governador em pleno exercício do cargo ser preso –para se unir a uma coleção de outros três ex-governadores já detidos.

O emedebista Pezão, vice de Sérgio Cabral e seu sucessor, deixa o governo pela porta dos fundos a apenas um mês de concluir seu mandato. É mais um golpe que a Operação Lava Jato, não sem angariar críticas pela espetacularização, desfere contra um esquema que os investigadores sustentam existir há décadas, com múltiplos tentáculos nos poderes do Estado e com disposição para seguir com os desvios mesmo com boa parte da elite política fluminense atrás das grades.
Pezão, cuja prisão foi autorizada pelo Supremo Tribunal de Justiça a pedido da Procuradoria Geral da República, foi acusado por um delator de ter recebido uma mesada mensal de 150.000 reais entre 2007 e 2014, propina que incluiria décimo terceiro salário e dois bônus, pagos em 2013, de 1 milhão. No total, segundo os procuradores, ele teria recebido 40 milhões em propina. Tudo como parte de taxas pagas pelas empresas para obter os mais variados tipos de contratos públicos. Tudo ainda em pleno funcionamento, segundo a Lava Jato. Por isso, argumentou a Procuradoria Geral, era urgente prender o discreto governador do Rio,para impedi-lo de atrapalhar novas descobertas.
A detenção do governador, que nega todas as acusações, ocorre apenas três semanas após a prisão de dez deputados estaduais da Assembleia Rio de Janeiro (Alerj) acusados de receber um mensalão em um esquema iniciado ainda na gestão do Cabral e que seguia vigente. Antes dos parlamentares, já haviam ido para a prisão o próprio Cabral, outros dois ex-governadores, e os três homens mais importantes do MDB na Alerj: os deputados Jorge Picciani e Paulo Melo, ex-presidentes da Casa, e também Edson Albertassi.
Os operadores foram caindo um a um também em outros poderes. As investigações levaram para a cadeia conselheiros do Tribunal de Contas do Rio, o ex-procurador geral de Justiça do Estado, Claudio Lopes. No total, foram presas nada menos do que 188 pessoas a partir dos esquemas revelados na Lava Jato só no Rio, um complexo de irregularidades por décadas acobertado pelo Ministério Público Estadual, cujo chefe foi sendo escolhido por sucessivos governadores ligados, de uma ou outra maneira, aos desvios.

A centralidade da Alerj

Trata-se da derrocada da cúpula de um grupo que conquistou a hegemonia absoluta na política do Rio. Segundo o cientista político da Uerj, João Trajano, é a queda de uma engrenagem que nasceu na Assembleia Legislativa do Estado e se consolidou com a chegada de Cabral ao Palácio das Laranjeiras, em 2007 – após ser eleito no ano anterior com mais de 5 milhões de votos (68% do votos válidos), o governador mais votado do país. “Cabral já era uma liderança muito influente no Rio, assim como Jorge Picciani. Eles montaram um esquema de poder e de negociação com grupos de empresários que criou um sistema. A negociação de cargos e de recursos, de vitórias em licitações, isso tudo foi sendo construído ao longo de duas décadas. Construíram uma hegemonia no partido com fortes conexões no interior e na Alerj. Quando Cabral assumiu o executivo, esse grupo monopolizou o acesso aos bens públicos, com forte apoio do Governo federal”, resume Trajano.
O economista Mauro Osório, professor da UFRJ, concorda que um elemento central da degradação é a Alerj, mas argumenta que é preciso ir ainda mais atrás no tempo, na ditadura militar, para rastreá-la. Ele cita o emedebista Chagas Freitas, que emerge com a cassação de políticos de oposição pelo regime militar. “Chagas foi eleito indiretamente em 1970 e 1978. Em 1982, (o pedetista) Leonel Brizola ganhou a eleição, em oposição ao chaguismo. Mas o chaguismo faz um terço da Alerj. Foi aí que o poder no Rio de Janeiro passou a ser organizado na Alerj. Cabral foi herdeiro desse poder, e também dessa lógica mafiosa”, afirma Osório. “Como no sul da Itália, o Rio também teve a sua máfia.”
As prisões em série não tem precedentes, mas nenhum dos analistas se furta de fazer ressalvas à Lava Jato e seus métodos. “Não é coincidência esse MDB ter sido um aliado muito fiel do governo PT. Não estou desqualificando o combate que está sendo feito, mas há indícios de que isso está sendo levado de forma seletiva em Curitiba e também no Rio de Janeiro”, critica Trajano, em referência ao ritmo da operação em outros Estados, como São Paulo, de hegemonia tucana. “Há certa espetacularização na prisão de um governador a um mês do fim do mandato”, critica Osório. Eurico de Lima Figueiredo, cientista social da UFF, completa: "Não sei se havia essa necessidade de fazer dessa prisão um espetáculo. O Brasil, nos últimos quatro anos, conviveu com fatos que possivelmente em outro sistema político teria havido uma implosão. A pergunta é como é que o Brasil pode sobreviver a esses abalos sísmicos.” 

"Pega ladrão"

Se a prisão de Luiz Fernando Pezão faz parte de uma sequência bem marcada no Rio, ela destoa da de seu antecessor Cabral em um aspecto: o perfil público dos acusado. O que o governador do Rio fazia com tanto dinheiro? Ao contrário da vida de excessos e boemia do casal Cabral, havia pouquíssimos sinais de riqueza evidentes na rotina de Pezão. O luxo público mais conhecido do governador era seu roteiro gastronômico no Leblon, que começava na delicatessen Talho Capixaba e terminava no restaurante Quadrucci, na rua Dias Ferreira, famosa pelos restaurantes estrelados com pratos nem sempre à altura dos cifrões do cardápio.
Acostumado a andar sem seguranças em sua Piraí natal, Pezão só passou a viver rodeado de brutamontes em meados de 2013, quando era candidato ao governo do Estado. Até então, mesmo sendo vice-governador, ele descia os degraus de seu prédio sem elevador na rua Rainha Guilhermina, no Leblon, e saía para caminhar sozinho antes mesmo das 6h. Foi assim que perdeu 18 quilos após seis meses de esforço, por recomendação médica.
O homem tido como simples, que em 2016 se afastou por seis meses para tratar um câncer, mudaria rápido de imagem: foi recebido nesta quinta na sede da Polícia Federal, na Zona Portuária, às 7h50, aos gritos de “Pega ladrão”. Na prisão, ficará sozinho em uma sala reservada, sem grades, monitorado por câmeras dia e noite. É um espaço reservado a autoridades, com o pomposo nome de “sala de estado maior”: um pedaço de chão com cama e vaso sanitário no Batalhão Especial Prisional de Niterói, a uma ponte de distância do Rio. Em sua primeira noite no cárcere, ele poderia escolher um prato de macarrão – não do Quadrucci–, mas preferiu jantar arroz, feijão, farinha, carne, legumes, salada, com sobremesa e refresco. No mês passado, o governador mais rejeitado do país – aprovado por somente 2% da população –, disse à revista Época que contava os dias para deixar o poder. Agora, contará os dias para sair de um lugar muito menos desejado.

Corrupção sozinha não explica crise profunda


Numa tarde ensolarada de 2010, dia 19 de janeiro, a ex-atleta marroquina Nawal El Moutawakel, que presidiu a comissão de coordenação dos Jogos Olímpicos de 2016, ficou emocionada ao ver crianças tocando violino, uma versão mais lenta de “Brasileirinho”, clássico da música popular brasileira, no alto da favela Santa Marta, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. Quando a música terminou, um grupo de moradores do alto do morro começou a gritar contra a falta de água. Irritado, Sérgio Cabral virou-se para um dos que protestavam e disse: “Ô Raimundão, para de tomar cana e vai trabalhar, vagabundo”. O homem respondeu: “Eu tomo cana porque não tenho água”, e o grupo voltou a gritar “queremos água, queremos água”.
Constrangido, Cabral tirou a marroquina dali, puxando-a para um ângulo de onde era possível ver o Cristo Redentor. “Look at the view”, disse o então governador do Rio. Dois meses antes, ele tinha levado a cantora Madonna ao mesmo lugar, para onde voltou muitas vezes, com muitas celebridades. Atualmente Cabral está preso, além de seu sucessor; o Santa Marta, onde nasceu o programa Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), há exatos dez anos, está novamente dominado por traficantes de fuzis; e os moradores do alto do morro continuam sem água. Ruiu em pouco tempo o que foi mostrado ao mundo.
Apesar do clamor popular e da revolta em torno da prisão da elite política fluminense, a pesquisadora Mônica Mora, da Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas (Dimac) do Ipea, diz que não é possível associar `a corrupção a profunda crise fiscal e econômica do Estado, sem falar da escalada violenta em um Estado sob intervenção federal. Mas Mora frisa, porém, que tudo veio à tona ao mesmo tempo. Ela vê decisões erradas tomadas pelos governadores Cabral e Luiz Fernando Pezão como determinantes para o buraco em que o Estado se encontra. No caldeirão da crise, entram a acentuada queda dos royalties do petróleo, da arrecadação de ICMS do Estado, o aumento do endividamento por causa dos grandes eventos, e também os reajustes ao funcionalismo público em épocas de vacas gordas. “O Estado perdeu, entre 2014 e 2017, 21,3% do total de receitas. Um quinto da receita de um Estado é uma queda muito acentuada. Por isso a questão fundamental para o Rio é se a economia do país será retomada ou não”, afirma a pesquisadora.
O cientista político João Trajano não vê motivos para otimismo tampouco em relação ao próximo governador do Rio, o ex-juiz federal Wilson Witzel, um dos eleitos na onda bolsonarista, que começou a campanha com apenas 1% das intenções de voto, e atropelou todos os rivais, inclusive Eduardo Paes, velho aliado de Sérgio Cabral. “Esse grupo que está na cadeia conseguiu uma hegemonia tão forte na política fluminense que a sua queda deixou a política do Estado à deriva. Quando isso acontece, em qualquer parte do mundo, surgem condições ideais para figuras histriônicas, de segundo escalão, comprometidas com o velho sistema político. Não temos porque esperar coisas boas do futuro”, lamenta.

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Caio Barreto
Marina Rossi
RJ/SP
El País

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