Na última terça-feira, o Supremo Tribunal Federal decidiu retirar das mãos do juiz Sérgio Moro parte das delações da Odebrecht que citam o ex-presidente Lula no caso do sítio de Atibaia. Dois dias depois, Moro desafiou o Supremo, decidindo que a ação deveria permanecer em Curitiba. Para Eloísa Machado de Almeida, especialista em Direitos Humanos e uma das coordenadoras do Supremo em Pauta, é difícil saber o que as decisões, tanto do Supremo, quanto de Moro, podem significar em termos práticos. Mas ela arrisca dizer que o juiz de Curitiba está "inaugurando uma queda de braço" com o STF.
"Imagino que muito em breve teremos um novo pronunciamento do Supremo sobre isso", disse, em entrevista ao EL PAÍS.
A professora da FGV Eloísa Machado de Almeida |
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Pergunta. O que essa decisão mais recente da segunda turma do Supremo, de tirar das mãos de Moro parte das delações que envolvem o processo do sítio de Atibaia, significa?
Resposta. O Moro já decidiu que não vai enviar este caso para a Justiça de São Paulo.
P. Mas ele pode fazer isso?
R. Eu acho que ele está inaugurando uma queda de braço com o Supremo. O que ele diz é que o acórdão sequer foi publicado, o que é verdade, e que não há uma referência direta sobre quais partes do processo devem ser remetidas a São Paulo. Ou seja, Moro está resistindo a essa decisão. Por isso acho que muito em breve teremos um novo pronunciamento do Supremo sobre isso. Talvez explicando quais fatos relativos ao processo de Atibaia não têm conexão com a Petrobras, justificando assim a decisão de tirar da Lava Jato.
P. Na mesma terça-feira, a Justiça de Minas Gerais deu mais um passo para a condenação de Eduardo Azeredo. O processo é sobre um crime que teria ocorrido há 20 anos. Diante de um julgamento que ocorreu em tempo recorde, o do ex-presidente Lula, há dois pesos e duas medidas?
R. O grande desafio que está colocado é a capacidade de a Lava Jato ir além de Lula. Alguns movimentos ocorreram logo após a prisão dele, como o recebimento da denúncia contra Aécio Neves e agora essa nova etapa do caso de Azeredo. Mas não se trata do mesmo tratamento e isso é evidente. Principalmente quando falamos em prisão, porque estamos falando de um símbolo muito forte para uma pessoa que vive da imagem pública como Lula. Tem um efeito simbólico que vai para além da condenação. E até agora não houve nenhuma prisão de alguma figura no mesmo nível de Lula.
P. Nas eleições de 2014, elegemos um Congresso ultraconservador.
Naquela época, o Supremo, era visto como uma espécie de boia de
salvação no debate de pautas mais progressistas. Discussões como a da descriminalização do uso da maconha e do aborto avançavam na corte,
enquanto emperravam na Câmara ou no Senado. De lá para cá as coisas
mudaram? Como enxerga os últimos quatro anos de atuação do Supremo?
R. O Supremo mudou. Aquele Supremo que julgou pesquisas com células tronco
e ações afirmativas, por exemplo, não é mais o mesmo. Houve uma mudança
relevante de composição no tribunal e de fato, agora, o tribunal não
tem conseguido avançar em grandes matérias referentes aos direitos
humanos. Ainda que algumas matérias tenham sido votadas, como demarcação
de terras quilombolas, o reconhecimento de união para pessoas de mesmo sexo,
as cotas para negros nos concursos públicos. Houve uma série de algumas
ações positivas em relação aos direitos humanos, mas a impressão que a
gente tem é que esses casos foram julgados com bastante esforço,
sobretudo a demarcação de terras quilombolas. Não foram casos fáceis de
passar no Supremo. Havia resistência, foram sessões interrompidas. Não é
mais um tribunal que tem na predominância da sua pauta ações de
direitos humanos.
P. Isso é só porque a composição mudou? Ou tem outro fator relevante para ser levado em consideração?
R. Tem outras coisas. Um fator, claro, é a
composição. Você muda a composição, muda o tribunal. E isso faz
diferença. Há também uma agenda que se instalou no Supremo, talvez desde
o mensalão, de combate à corrupção. E aí, de certa maneira, as duas
grandes operações, o mensalão e a Lava Jato,
acabaram por monopolizar ou deixar quase monopolizada a pauta do
Supremo para esses temas. E desde 2014, também com a deflagração do
processo de impeachment da Dilma,
o que a gente vê é o Supremo Tribunal Federal no centro da crise
institucional brasileira, não necessariamente ajudando a resolver essa
crise, e trazendo questões como por exemplo o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, afastamento de presidente do Senado,
ou sobre prisão em flagrante de senador, suspensão de exercício de
mandato de senador, prisão em segunda instância... Ou seja, o STF de
2014 para cá é o STF do impeachment, da Operação Lava Jato e o STF que
marcou uma nova forma de relação com os demais poderes, impondo o que eu
tenho chamado de uma agenda de moralização da política.
Ainda que você possa ter, e claro, como tem, a relevância da descoberta
de alguns casos de corrupção, o tribunal de certa maneira aproveitou a
Operação Lava Jato para impor o que ele considera ser uma visão adequada
de Justiça.
P. Você acha que o STF está funcionando como deveria funcionar?
R. Não, não está. Essa agenda de
moralização da política é muito perniciosa para o ambiente democrático.
Tribunais com agenda são bastante complicados em uma democracia e quando
a gente analisa especificamente as ações, todas elas são ações tomadas
em momentos de excepcionalidade, o que trouxe uma grande insegurança
para o cenário jurídico. O exemplo mais recente, claro, é o da prisão em segunda instância,
onde, por conta da excepcionalidade da Operação Lava Jato, se muda o
entendimento, depois com votos contados se volta atrás, e em razão da
excepcionalidade do caso do Lula não se revisita esse tema. Isso sem
mencionar o poder enorme ao qual o Supremo se autoconferiu ao se
permitir por exemplo suspender o exercício de mandato de deputados e
senadores. Isso não é uma medida prevista na Constituição, foi uma
medida adotada no caso do [ex-presidente da Câmara dos Deputados]
Eduardo Cunha, agora novamente no caso do senador Aécio Neves
[o Senado derrubou mais tarde a decisão do STF] e mostra o grau enorme
de interferência do Supremo em relação ao sistema político. Claro, tem
muita coisa na Operação Lava Jato que é um processo criminal, que é
interpretação, que pode ser mais ou menos dura em relação ao crime de
corrupção, que envolve caixa 1, caixa dois, toda essa jurisprudência
mais ou menos pesada em relação a essa agenda de combate ao crime. Mas
associada à Operação Lava Jato tem também uma proposta de moralização da
política que no meu entender é bastante negativa.
P. Como esse superpoder do Supremo pode interferir nessas eleições?
R. Já está interferindo. Eu não tenho
dúvida de que essas eleições estão pautadas talvez mais pelo Supremo
Tribunal Federal do que pelo próprio sistema político. A gente tem um
pré-candidato à presidência que teve seu caso julgado recentemente, que é
o Lula, que teve seu caso julgado no Supremo e em razão disso foi preso
e está cumprindo provisoriamente a sua pena. Outro pré-candidato à
presidência da República muito bem colocado nas pesquisas, o Bolsonaro,
já responde a um processo no Supremo, que é o crime de injúria contra a
deputada Maria do Rosário [em 2014, Bolsonaro disse à deputada petista que não a "estupraria" porque ela "não merecia],
e ele também pode ficar fora da disputa presidencial caso seja
condenado, e tem uma nova denúncia agora apresentada pela Procuradoria
Geral da República que ainda não foi julgada pelo Supremo [a PGR
apresentou no último dia 13 uma denúncia contra Bolsonaro pelo crime de racismo. Em abril de 2017, o deputado disse em uma palestra que quilombolas "não servem nem para procriar"].
P. E são esses dois pré-candidatos que estão liderando as pesquisas.
R. Pois é. É evidente que tem uma relação muito grande do Supremo com as eleições. Há uma terceira figura relevante agora que é o Aécio Neves (PSDB) que se tornou réu.
Além de outras várias decisões que mudaram drasticamente a maneira das
eleições, como, por exemplo, a proibição do financiamento privado de
campanha. São muitas decisões sobre o sistema eleitoral e essas decisões
hoje, especificamente as que se referem à Operação Lava Jato, estão
pautando o cenário eleitoral.
P. Isso poderia ser o reflexo de uma crise institucional?
R. Sem dúvida. Uma das coisas que foram
reveladas durante esse processo é o grau de promiscuidade de parte da
nossa classe política, mas isso não pode servir de pretexto para que o
direito substitua a política. Claro, todos esses casos devem ser
investigados e devidamente punidos, mas não se pode permitir que o
judiciário escolha quem governa e quem pode ser eleito. Isso gera
problemas muito grandes para a qualidade da nossa democracia. E o que a
gente vê hoje é que de fato, com este grau de abrangência do Supremo e
da Operação Lava Jato, tudo é decidido no âmbito do Judiciário.
P. E neste contexto, temos um
ex-presidente do Supremo que nem lançou a sua pré-candidatura e já
aparece nas pesquisas com 10% das intenções de voto. Como você enxerga a possível candidatura de Joaquim Barbosa?
R. Ele se tornou uma figura bastante
popular em razão talvez desta postura bastante dura na ação penal 430, o
mensalão. E isso não é só o caso de Joaquim Barbosa. Se a gente
analisar o fenômeno que se desenvolveu em torno da figura de Sérgio Moro
é algo muito parecido. E isso é um reflexo deste debate que eu estou
trazendo: o judiciário tem uma agenda de moralização da política onde a
política passa a ser vista como algo sujo, eminentemente corrupto, onde o
próprio sistema presidencialista passa a ser acusado de algo criminoso,
onde ações que não são criminosas, mas são políticas, passam a ser
enxergadas como algo ruim. E aí tem a substituição da via da política
por esses heróis do judiciário. Me parece que é um movimento natural
dessa agenda que tem sido encampada pela Procuradoria Geral da
República, pelo Ministério Público -e isso é importante que se diga- mas
completamente abraçada pelo judiciário.
P. Qual balanço você faz sobre a alteração da jurisprudência para prisão em segunda instância?
R. Eu sou muito crítica a essa posição do
Supremo. Primeiro porque a Constituição é bastante clara. Não bastasse a
Constituição, há também o Código de Processo Penal que é ainda mais
explícito em relação à possibilidade de prisão até o trânsito em
julgado. O tribunal que ignora uma garantia que se tem da Constituição
em nome de uma suposta necessidade de se realizar justiça é algo
inadmissível. Além disso, o nosso sistema de justiça é seletivo.
As pessoas pobres e negras são alvos preferenciais e isso faz com que
as nossas prisões sejam lugares absolutamente desprovidos de qualquer
condição humana de se manter uma pessoa ali. Portanto, não há nenhuma
razão para se acreditar que essa medida tomada pelo Supremo também não
será afetada pela seletividade. Permitir prisão em segunda instância,
inclusive sem aguardar até o habeas corpus, é bastante
preocupante. E é evidente que, sendo o nosso sistema de justiça
seletivo, essa medida também será aplicada seletivamente.
P. Acha que essa alteração colaborou para superlotar os presídios ou reduzir a corrupção?
R. Não. A gente não pode afirmar que isso
especificamente tenha gerado superlotação. A causa principal de
superlotação nos presídios ainda está associada à prisão antes de
qualquer sentença. Entre 30% e 40% das pessoas que estão nos presídios
sequer receberam sentença. Estamos falando de um sistema que funciona
muito mal. Você não vai melhorar esse sistema simplesmente antecipando a
pena com trânsito em julgado.
conteúdo
Marina Rossi
El País
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