Na mesma semana em que deve
encaminhar a primeira denúncia contra o presidente Michel Temer, o
procurador-geral da República, Rodrigo Janot, começa a despedir-se do
cargo.
O segundo mandato de Janot, que ganhou grande visibilidade
com o andamento da Operação Lava Jato, acaba em setembro. Nesta
terça-feira, os integrantes do Ministério Público Federal votam uma
lista tríplice para indicar um sucessor.Além de ocorrer em meio a uma crise política, o processo será definido pelo próprio Temer, que tem a prerrogativa constitucional de escolher qualquer membro da carreira com mais de 35 anos de idade. O costume seguido desde o governo Lula, no entanto, é que o presidente decida por um dos três nomes mais votados pelo MPF.
Dada a importância do cargo para a operação e o delicado momento político em que a transição ocorre, teme-se que o substituto de Janot possa interferir na Lava Jato. Levando essa dúvida em consideração, a reportagem conversou com professores de Direito constitucional e penal para discutir se é possível (e provável) que, com seus poderes, o novo procurador-geral da República prejudique as investigações.
Os especialistas que consideram essa possibilidade viável lembram de ex-procuradores do MPF que tinham pecha de "engavetadores da República" - conhecidos por evitar denúncias - e evocam a concentração de poderes nas mãos de uma única figura, que toma várias decisões sozinha.
Já quem refuta a interferência do próximo procurador cita a solidez institucional do Ministério Público, o perfil comprometido de seus membros e a força da Lava Jato, sem falar da pressão de sociedade para que os trabalhos continuem.
Antes de entrar nos argumentos, é importante entender melhor o que faz o procurador-geral da República. Como chefe do Ministério Público Federal, ele exerce as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal e outros tribunais superiores.
"O MP é o órgão que, segundo a Constituição, faz a defesa da sociedade. O procurador, então, zela pelo interesse da sociedade, é como se fosse seu representante", explica a professora de Direito constitucional da PUC-SP Marina Faraco.
Ou seja, Janot é o chefe dos procuradores e seus deveres são similares aos de seus subordinados, só que em uma instância superior - por isso, lida com presidentes, ministros e parlamentares. No Supremo, ele pode pedir a abertura de investigações e propor ações penais contra esses personagens, como está acontecendo com Temer.
"As mais altas autoridades da República são processadas pelo procurador-geral. Nesse sentido, ele detém muito poder: de processar, de investigar, de mover ações. Em certa medida, a persecução penal (investigação e ação) é só dele. Se ele não investigar uma autoridade dessas, ou denunciá-la, ela não passará por isso", diz o professor de Direito público da PUC-SP Marcelo Figueiredo.
É possível que prejudique
A concentração de poderes na mão de uma única pessoa é o principal ponto daqueles que julgam ser possível que um procurador-geral possa prejudicar a Lava Jato.A decisão de denunciar ou não um presidente - como a que está sendo tomada por Janot -, depende apenas do procurador-geral, diz Figueiredo, por isso, o perfil do sucessor faz muita diferença. Embora acredite que a operação "já tenha pernas próprias", afirma que alguém mais ativo ou destemido deve acelerar os procedimentos. Já as características opostas poderiam fazer as coisas caminhar lentamente.
"É a pessoa que imprime um ritmo, que diz 'vamos investigar agora' ou 'vamos esperar mais provas'. Se for alguém inseguro, pode demorar mais."
Para o professor, além do conhecimento jurídico, ao avaliar se move uma ação ou não, é inevitável que o procurador leve em conta fatores subjetivos, sua "sensibilidade".
Eloisa Machado, da Escola de Direito da FGV, lembra como antigos ocupantes da cadeira tiveram abordagens bem distintas. Ela cita Claudio Fonteles, que exerceu o cargo entre 2003 e 2005, e moveu ação de inconstitucionalidade contra a pesquisa com células-tronco embrionárias. Católico, ele sustentava que a existência acontece a partir da fecundação e que as pesquisas não observavam o princípio constitucional do direito à vida.
No polo oposto estaria a ação para reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, movida em 2011 pelo então procurador- geral Roberto Gurgel.
"Sempre há uma questão de escolha. Procuradores mais liberais vão propor ações com enfoque mais liberal. O mesmo acontece com conservadores", diz Machado.
"O procurador não é obrigado a levar nenhuma ação ao Supremo. No governo Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Brindeiro era chamado de 'engavetador geral da república'. É o papel que (Rodrigo) Maia faz hoje na Câmara: uma pessoa que consegue barrar todos os pedidos de impeachment."
Ao discutir que tipos de interferências poderiam ocorrer, Machado e Figueiredo falam mais de atrasos do que de interrupção.
A professora diz que, por natureza, o andamento das ações é mais lento no Supremo Tribunal Federal se comparado à primeira instância. Além de julgar crimes de alto escalão, os 11 ministros lidam com centenas de ações de inconstitucionalidade e processos complexos que vêm de outros tribunais. Sem falar nos julgamentos, feitos coletivamente e não por apenas um juiz.
Com um procurador-geral da República menos dinâmico, uma demora maior é iminente, afirma Machado. Até agora, nenhum político acusado na Lava Jato foi condenado pelo STF.
"Estamos falando de procuradores que tiveram coragem e disposição para levar as pessoas mais poderosas da República ao Supremo, tanto no mensalão quanto na Lava Jato. Se com toda essa disposição tudo anda mais devagar, caso o próximo coloque o julgamento desse núcleo político em segundo plano, as ações podem não chegar ao fim."
Em debate na quinta-feira, os oito candidatos à sucessão de Janot disseram que pretendem intensificar a atuação do Ministério Público no combate à corrupção. São eles os subprocuradores Eitel Pereira, Ela Wiecko, Franklin da Costa, Frederico Santos, Mario Bonsaglia, Nicolao Dino, Raquel Dodge e Sandra Cureau.
Apesar do consenso sobre a luta contra a imoralidade na política, Cureau foi contra a abertura de investigação sobre crimes praticados por um presidente antes de seu mandato - caso de Temer, acusado de pedir propina e receber repasses ilegais para suas campanhas. No evento, o último antes da eleição, os concorrentes não discutiram especificamente a situação do mandatário.
Não deve prejudicar
Para os professores que rejeitam possíveis prejuízos à operação, os candidatos ao cargo, assim como os demais membros da carreira, estão comprometidos em dar continuidade ao esforço de Janot. Além disso, acreditam que a instituição e a operação teriam força suficiente para não depender do desempenho do procurador-geral."É impossível na minha cabeça vir alguém que boicote a Lava Jato, porque ele participa de uma instituição que tem como função acusar as pessoas. As carreiras de Estado no Brasil tiveram um amadurecimento tão grande que é impossível alguém acabar com tudo", diz o professor de Direito da FGV Luciano Godoy.
Ele cita o avanço do Ministério Público nos últimos oito anos, frisando que o órgão está mais presente na vida política do país e tem mais credibilidade.
Nesse cenário, afirma o professor da PUC e procurador de Justiça Antônio Carlos da Ponte, não cabe um "engavetador".
"Pela própria cobrança institucional, não há chance, e a sociedade não admitiria isso. Esses episódios que envolveram a Presidência foram uma prova concreta disso: não há mais espaço para tentar frustrar a operação."
Segundo Ponte, que atua como procurador desde 2009, todos os participantes da disputa têm um histórico respeitável e o MP é "muito maior do que poucas pessoas representam".
O mesmo se aplicaria à operação Lava Jato, que já está numa fase avançada, com vários presos e investigados.
Lista tríplice
Os oito nomes citados acima concorrerão à eleição organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Os três mais votados formarão a lista tríplice. Entre os favoritos, estariam os subprocuradores-gerais Mario Bonsaglia, Raquel Dodge, Ela Wiecko e Nicolao Dino.Há 14 anos, o presidente da República escolhe o primeiro colocado da lista como procurador-geral, que depois precisa ser aprovado pelo Senado. No entanto, o Palácio do Planalto vem dando pistas de que poderá mudar esse costume, já que não há obrigação legal de segui-lo.
A maioria dos entrevistados considera essa hipótese pouco provável, pela indisposição que Temer criaria com o Ministério Público, mas não deixam de vê-la com preocupação.
De acordo com o professor de direito penal Salah H. Khaled, da Universidade Federal do Rio Grande, ignorar a lista seria um "enorme desrespeito" com a instituição e um indício de que o presidente age para obstruir investigações nas quais poderia estar implicado.
"Agravaria a crise institucional e o cenário de guerra entre Poderes da República. Apesar de tudo isso, não descarto a possibilidade. Temer indicou Alexandre de Moraes para o STF, um constitucionalista de escassa relevância acadêmica. A indicação visivelmente foi política. Não seria surpreendente se agisse da mesma forma neste caso."
Com tal indicação política, diz a professora Eloisa Machado, a continuidade da operação como é hoje estaria em jogo.
"É o investigado definindo o investigador. É um escândalo. O presidente deveria ao menos escolher o primeiro indicado (da lista tríplice)."
Segundo ela, ainda que indicar qualquer integrante do MPF com mais de 35 anos seja uma prerrogativa do presidente, as consequências de ignorar a lista seriam graves - e haveria um contra-ataque da instituição. A reação poderia vir por meio das ações criminais da Lava Jato e até de uma atuação contra políticas governamentais.
Descumprir a prática também levaria a um isolamento do sucessor de Janot, já que ele não seria visto como legítimo por seus colegas, diz Luciano Godoy, da FGV.
No fim das contas, pondera Marcelo Figueiredo, da PUC, há mais razões para seguir a tradição do que para rompê-la. Segundo o professor, Temer estaria numa situação muito delicada para comprar uma briga que pode ser evitada.
"Um presidente democrata não pode ignorar uma lista tríplice. Não acho impossível, mas ele iria arrumar mais um problema na Procuradoria. Ainda que não siga (o costume) pela ética republicana, acredito que o respeite pela conveniência política."
Ingrid Fagundez
BBC Brasil
São Paulo
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