A judicialização da Política alcançou patamares alarmantes
no Brasil. Sob o argumento de que vivemos em um país com alarmantes
índices de corrupção, o sistema de justiça passou a tutelar todas as
áreas, interferindo em políticas públicas, imiscuindo-se no mérito do
ato administrativo, desbordando de suas competências para envolver-se
com assuntos que foram tradicionalmente conjugados conforme uma
organização horizontal do poder, violando assim a autonomia dos poderes
políticos, tudo submetendo ao jurídico. Essa tentativa de colonização do
mundo da vida pelo jurídico se realiza mediante um alargamento do
espectro argumentativo, desligando a argumentação jurídica de qualquer
vinculação à lei, possibilitando assim que setores do Ministério Público
e do Judiciário possam impor seu arbítrio.
I – Os tribunais e a democracia
No modelo que ora se apresenta, a legitimidade da
democracia decorre dos tribunais constitucionais. Conforme esse modelo,
não apenas ocorre a judicialização da política, mas sua conseqüente
criminalização, chegando-se à conclusão segundo a qual a democracia
emana do direito. Esse quadro teórico contraria todo o projeto
libertário contido na modernidade.
O sentido da modernidade é o expresso por Newton, na
física, e por Kant, na filosofia, ou seja, estabelece-se com a elevação
da crise à estrutura racional, tanto no patamar teórico, como no
prático.
É isso que levou Henrique Lima Vaz a afirmar que na
modernidade a racionalidade nomotética é substituída pela hipotética.
Essa mesma questão é respondida de modo muito perspicaz por Napoleão
Bonaparte ao afirmar que o mundo moderno surge quando a tragédia grega é
substituída pela política. Não havendo mais oráculos para consultar,
nem sacralidades donde se deduzem respostas, as decisões passam a ser
dos cidadãos que, associadamente, são plenipotenciários.
Não se trata de simples separação do poder em esferas
autônomas, conforme uma organização horizontal, mas de estabelecer uma
verticalidade, com a qual o exercício funcional do poder se submete à
soberania popular. Para ser legítimo o Estado se submete ao poder dos
cidadãos, estabelecendo-se o que se chama soberania popular, com a qual
aos poderes políticos compete a direção dos negócios estatais. Portanto,
não havendo Estado legítimo sem democracia é o governo que asperge
legitimidade às manifestações estatais.
Kelsen propõe a adoção de tribunais constitucionais num
contexto europeu entre as duas grandes guerras. Vivia-se a quebra de
paradigmas hermenêuticos, sobretudo com a entronização do particular
sobre o universal.
Essa perspectiva gera a insuscetibilidade de submissão de
uma interpretação a outra, mas também garante que não haja supremacia
cultural de um país sobre outro, o que se institucionalizava com a
supremacia parlamentar, vez que cabia aos parlamentos a representação
das distintas visões de mundo. Daí a máxima segundo a qual “cada cabeça
uma sentença”. Festeja-se com isso a diversidade cultural e um grau
razoável de autonomia da sociedade civil ante o Estado.
Ora, os tribunais constitucionais logram
institucionalização por intermédio de um ato político decorrente da
vitória norte-americana na segunda grande guerra. A fim de esmagar a
diversidade cultural, as distintas visões de mundo e a submeter a todos a
uma mesma orientação, passada a guerra os Estados Unidos impuseram aos
vencidos a adoção de tribunais constitucionais.
O exemplo alemão é marcante. Sem eleições e tampouco sem
democracia foi outorgada uma Lei Fundamental e criado o tribunal
constitucional na Alemanha. Como compatibilizar a existência de um
tribunal dito constitucional se não há Constituição? A resposta é
simples: o exercício funcional do poder pode perfeitamente ser jurídico
sem ser democrático.
Se o modelo dos tribunais constitucionais é imposto à
Europa como conseqüência aos regimes totalitários, houve algo
profundamente nazista que sobreviveu à guerra. Trata-se daquilo presente
nas cartas do ministro da Justiça do Reich destinadas aos juízes
alemães: o apelo ao contorno às leis, às suas prescrições e sua
conseqüente substituição pela concreção dos ideais nazistas que deveriam
ser operada pelos juízes.
O que se pretendeu com isso? Estabelecer o primado da
interpretação judicial sobre a lei. O propósito é claro: trata-se de
conferir à interpretação realizada pelo Judiciário supremacia política,
operada por uma argumentação sem peias, pela qual ao magistrado é
conferido o papel de oráculo. Ou seja, a interpretação dos juízes passa a
desconsiderar o direito, fazendo com que a vontade de juízes e de
promotores prepondere, em cenário em que as leis são permanentemente
desconsideradas.
Temas dos mais candentes nas democracias são o exercício
legítimo do poder e o modo que se realiza sua contenção. Estabelecem-se
assim uma estrutura majoritária (a política) e uma contra majoritária (a
judiciária). Desse modo, as democracias têm uma organização horizontal
do poder pela qual direitos são reconhecidos pelos poderes políticos e
defendidos pelo sistema de justiça. Há assim uma tarefa positiva e
outra, de contenção.
Essa estrutura horizontal é apenas um modo de estruturação
do poder. A questão democrática se insere na medida em que esse poder
se subordina aos cidadãos, numa estrutura verticalizada. Assim, emana da
democracia uma divisão de tarefas pela qual direitos são reconhecidos
por uma estrutura majoritária em que as deliberações provenientes dos
poderes representativos constatam as diversas e, por vezes,
contraditórias manifestações de vontade. A isso se chama “soberania
popular” e é esta que torna legítimo o poder estatal.
O dever de contenção é o exercido pelo sistema de justiça.
Nesse sentido, a tarefa do Judiciário é a de garantir que os direitos e
as garantias fundamentais sejam efetivados enquanto perdurar o marco
jurídico que os instituiu.
Assim, o judiciário é, por definição, garantista. Nesta
seara uma diferenciação foi introduzida, no Brasil em 1988, com as
prerrogativas conferidas ao Ministério Público, pelas quais lhe cabe
promover direitos. Portanto, o sistema de justiça detém uma divisão de
tarefas, cabendo ao Judiciário agir conforme um padrão de inércia e ao
ministério público o de promover as ações necessárias ao cumprimento das
obrigações jurídicas.
Essa diferenciação é especialmente relevante em duas
searas, ou seja, no direito penal e no direito tributário, pois, como se
trata da defesa da liberdade e da propriedade, as funções se
especializam em decorrência da exigência de as vedações estarem
rigorosamente previstas no ordenamento jurídico.
Na seara penal, o Judiciário age como a instância que
garante as liberdades dos cidadãos, exigindo que o acusador demonstre de
forma inequívoca o que alega. Assim, a estrutura se realiza de modo
dicotômico: (I) ao acusador cabe produzir o arsenal probatório apto a
produzir a condenação e (II) aos cidadãos é deferida a perspectiva de
defender-se com os meios que lhe estiveram ao alcance. Constrói-se,
nesses casos, uma imunidade conceitual erguida para salvaguardar as
liberdades do cidadão ante o poder persecutório do acusador.
Ora, como é o Estado que promove a acusação, por
intermédio de um corpo de servidores constituído especificamente para
este fim, o Judiciário se distancia da acusação e passa a submeter à
acusação ao marco da legalidade estrita, de modo que método e
instrumento de suas atuações sejam diferentes. Isso ocorre para garantir
às liberdades um padrão institucional que tem, no sistema de justiça, o
Judiciário como seu guardião.
É essa divisão de tarefas que propicia legitimidade ao
sistema de justiça. Caso contrário, por que as decisões judiciais seriam
cumpridas? Por que elas seriam respeitadas? Por que então os próprios
cidadãos ou entes da sociedade civil não resolveriam por si mesmos tais
conflitos?
É o reconhecimento ao desempenho de um papel garantista
que confere ao Judiciário o acolhimento de suas decisões. Já o
reconhecimento à atuação do ministério público se vincula à promoção das
obrigações jurídicas.
Desse modo, não se atribui ao Poder Judiciário o “fazer”
justiça. O que se lhe atribui é o desempenho de um papel previamente
estabelecido, pelo qual “fazer justiça” significa o cumprimento correto
dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Portanto,
fazer justiça é o desincumbir-se de uma correção procedimental.
Certamente, a legitimidade do sistema de justiça decorre
de sua atuação técnica e de sua vinculação a uma ordem jurídica
legítima, na qual as obrigações jurídicas são democraticamente
formuladas. Justifica-se o cumprimento das obrigações jurídicas e das
decisões judiciais pela expectativa de que estas sejam validamente
imputáveis e que tal imputação se realize conforme uma correção
procedimental não sujeita a humores, a arbitrariedades ou a
imprevisibilidades.
Embora o desempenho desses papéis seja formalmente
estabelecido, eles não existem para si, não são ensimesmados. Ao
contrário, existem por se circunscreverem a uma autorização expressa dos
cidadãos que lhe infundem legitimidade. É assim que Montesquieu se
vincula a Locke, submetendo o exercício horizontal do poder à
democracia, isto é, à soberania popular.
Demonstra-se, assim, que são a previsibilidade e a
imputabilidade universal das obrigações que legitimam a atuação do poder
judiciário e o conforma a um papel previamente delimitado. Assim, é
absolutamente incompatível com o regime democrático um Judiciário que
paute suas decisões por critérios extrajurídicos, conforme uma tradição
aristocrática.
Cabe ao Judiciário circunscrever-se ao cumprimento de seu
papel constitucional, de se distanciar da tentativa de constatar as
vontades, de aplicar ao jurisdicionados os direitos e as garantias
fundamentais, sendo, por isso, garantista e contra majoritário. Assim, é
incompatível com as modernas exigências de justificação admitir que
poderes estatais ajam segundo perspectivas arbitrárias e ensimesmadas.
II – O Poder da Assembléia Constituinte e o Poder do Parlamento
O poder que torna possível a Constituição torna possível
também os Códigos e as Leis. Assim, o que distingue o poder constituinte
do processo legislativo é a autorização expressa (o voto) dos cidadãos,
dotando a assembléia constituinte do poder necessário para constituir
todas as relações. Sua autoridade criativa repousa antes na faculdade
que detêm os sujeitos de direito para criarem uma nova realidade
jurídica do que em um ato fundante. Assim, os cidadão são livres e
plenos de poderes para fazerem tantos atos fundadores, constituintes,
quanto acharem conveniente, isto porque o ato fundador congênere do
poder constituinte é tão-somente uma convenção.
Por conseguinte, são os sujeitos de direito, em ato
soberano, que conferem existência e autorizam o exercício do poder
constituinte. Desse modo, o poder constituinte não é sede de poder
algum, detém apenas o exercício de uma faculdade que emana diretamente
dos cidadãos. Não há de se falar tampouco em poder originário, porque o
poder não se origina no ato fundante, nem na assembléia convocada para
constituir o sistema jurídico. Origina-se dos cidadãos, por intermédio
de projeto orquestrado pelos sujeitos de direito de constituir um
sentido às normas e estruturá-las conforme o sentido atribuído.
A distinção entre poder constituinte e processo
legislativo não remonta à origem, mas ao modo de seu exercício. Isto é,
não há distinção categorial que oponha um ao outro, mas os dois
processos comungam da mesma gênese.
Fundando-se no poder dos cidadãos, tanto o processo
constituinte quanto o processo legislativo permitem a atualização de um
poder que estrutura a liberdade e a perpetua por meio de um ordenamento
conceitualmente concatenado. Interpor-se, obstruindo a passagem da
estrutura da liberdade (a Constituição), à sua ordenação concatenada (o
Código), seria uma das grandes armadilhas da modernidade, ao tornar
indisponível à soberania popular exprimir-se por meio de um processo que
se atualiza mediante um trâmite diversificado.
Assim sendo, o processo constituinte e o processo
legislativo decorrem ambos da soberania popular e, como formas de
exercício da representação do poder político, circunscrito apenas aos
cidadãos, não se distinguem entre si, tendo por isso mesmo apenas uma
diferença quantitativa, mas de modo algum uma diferença qualitativa,
pois o mandato de ambos é obtido da mesma fonte, ou seja, dos cidadãos.
A transformação da assembléia constituinte em instância
apartada da política resultou em uma engenharia constitucional segundo a
qual a representação do poder é deslocada das instâncias que decorrem
do voto para as instâncias judiciárias, pois caberia às cúpulas dos
tribunais e ao ministério público garantir a efetividade da
Constituição, por um lado, e por outro, em substituição à política,
atribuir sentido às normas, pois mediante a interpretação constitucional
fecha-se o círculo de judicialização da vida. Este círculo submete a
democracia deliberativa ao processo judicial por meio de uma
complementaridade entre o controle de constitucionalidade e a mutação
constitucional.
Acossado por um sistema jurídico que entende o Parlamento
como maculador da pureza herdada da assembléia constituinte, a sociedade
vê-se alijada de formas de expressão de vontade e de representação,
operada por um ativismo, do judiciário e do ministério público, que
passa a ser o titular da formulação, da interpretação e da efetividade
das normas, reunindo, sob seu arbítrio, as prerrogativas legislativas,
judicativas e executivas. Este Estado de exceção ganha efetividade
através de três passos:
Primeiro, com a judicialização da política, operada pela
submissão dos poderes políticos aos tribunais e ao ministério público;
segundo, com o protagonismo da justiça eleitoral, que transforma as
eleições de ato político em jurídico, nas quais os candidatos são
substituídos pelos juízes e promotores eleitorais; e terceiro, com a
submissão da Política à técnica, mediante a dicotomia entre Estado e
Governo, formulada pela blindagem das carreiras de Estado ante o
resultado das urnas.
III. Democracia no Brasil: um projeto inacabado
A judicialização da política se estabelece tanto como
burocratização das decisões cotidianas como com a exclusão dos que são
investidos pelo voto para tomá-las. A substituição da legitimidade do
sistema político pela aristocracia do sistema de justiça revela o grande
paradoxo em que vivemos: prescindir da democracia numa época em que se
alcança uma liberdade segmentada, seja como consumidor, como usuário ou
como eleitor. Acreditando que a liberdade se realiza no conjugar das
particularidades, o homem moderno foi prescindindo de sua cidadania, até
o limite em que se converteu em jurisdicionado.
Há uma afirmação muitas vezes repetida e pronunciada como
“mantra” pelos juristas no Brasil: “cabe ao STF errar por último”. Esse
poder de errar por último blindaria suas decisões à crítica, tornando-as
indisponíveis, inquestionáveis. Disso decorre outro dogma segundo o
qual “decisões judiciais não se discutem, cumprem-se”. Essas posições
indicam clara supremacia judicial, resultando em protagonismo do sistema
de justiça sobre os poderes políticos.
Posições como essas são inconciliáveis com regimes
democráticos, servindo de fundamento à confusão proposital que se faz
entre Estado de Direito e Democracia ou entre Estado de Direito e Estado
Democrático de Direito, como se, no caso brasileiro ou em todos os
demais, as ditaduras do século XX não tivessem sido todas
constitucionais, mantidas com estrita colaboração do sistema de justiça,
isto é, pelo Judiciário e pelo Ministério Público.
Nesse sentido, então, é preciso desinterditar a política
no Brasil. Assim, creio ser fundamental adequar o cenário institucional à
democracia, estruturando os poderes segundo uma lógica vertical,
conforme o princípio da soberania do povo.
Assim, é imprescindível que a política seja desinterditada
e para tanto é preciso estabelecer um novo marco para as relações
institucionais, de modo a oferecer saídas que não a criminalize:
(1) do direito administrativo, especificamente no que diz à
caracterização da improbidade administrativa, transformando em fechado o
tipo que rege a lei de improbidade;
(2) na gestão pública, relativamente ao conceito de
legalidade e de moralidade, alterando o art. 37 da Constituição da
República, de modo que o termo “legalidade” seja alterado para
“legitimidade” e com a descrição, na lei, do que vem a ser “moralidade
administrativa” e o que vem a ser “imoral” ou “ético” na administração
pública; e
(3) na esfera política, aplicando a separação dos poderes à
justiça eleitoral, passando a lhe caber somente o julgamento dos
litígios eleitorais, com a criação de Órgão constitucional ao qual caiba
criar as normas que regerão, organizarão e realizarão as eleições e os
partidos políticos.
Luiz Moreira
Brasil 247
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