O Ministro Ricardo
Lewandowski tem defendido a tese segundo a qual há uma hegemonia
judiciária decorrente de um período que contempla tanto democracia
quanto universalização de direitos. Segundo ele “estamos no século do
Poder Judiciário”.
Independentemente da
validade dessa tese, cumpre-nos discutir com Lewandowski tanto a tarefa
que cabe ao Judiciário em um cenário institucional em que há crescente
demanda por participação popular nas instâncias decisórias, quanto
possível subordinação do Judiciário aos interesses dos grupos que detêm
hegemonia política e a maneira pela qual essas questões interferem na
produção de um consenso expresso pela opinião pública, induzido ou
formulado pela mídia.
Em primeiro lugar, surge a
pergunta pela tarefa do Judiciário em uma democracia constitucional, na
qual se exige das instituições uma rigorosa justificação de suas
funções. Assim, não se atribui ao Poder Judiciário “fazer” justiça, pois
o voluntarismo ou o decisionismo judicial cede lugar a uma atuação
institucional em que o “fazer justiça” significa o cumprimento correto
dos procedimentos estabelecidos pelo ordenamento jurídico.
Portanto,
fazer justiça é o desincumbir-se de uma correção procedimental em que há
uma sucessão lógica de acontecimentos, não sujeita a humores, a
arbitrariedades ou a caprichos. Desse modo, aliando-se um sistema
coerente de direitos a uma lógica piramidal judiciária, com primazia das
decisões colegiadas sobre as individuais, em que juízes mais
experientes, reunidos em um colegiado, controlam as decisões dos demais
juízes, há a institucionalização do judiciário como garantidor dos
direitos fundamentais dos cidadãos.
No entanto, na medida em
esse sistema obtém sua legitimidade da política, passa ele a sofrer
influência tanto de grupos capazes de representação quanto de consensos
que traduzem modos de vida desses mesmos agrupamentos. Assim, se é
verdade que o direito só é legítimo na medida em que é produzido pela
democracia, também o é a necessidade de uma contenção, a fim de
distinguir sistema de justiça de instituições políticas. Nesse contexto
de divisão horizontal de tarefas é que a Constituição brasileira
estabeleceu uma diferenciação entre poderes políticos, aos quais compete
estabelecer as regras de conduta, pois regidos pelo princípio
majoritário, e o poder judiciário, cuja tarefa é decidir os conflitos
utilizando-se das regras anteriormente criadas, contrariando, se
necessário, opinião dos grupos hegemônicos, econômicos, corporativos ou
midiáticos.
Em segundo lugar, como em
qualquer sistema no de justiça há uma falha estrutural que propicia o
surgimento de um estado de exceção na democracia constitucional. Essa
exceção autoritária na democracia constitucional permite a
institucionalização da violência, transformando cidadãos em inimigos. Na
mídia, essa violência se cristaliza quando o cidadão é transformado em
alvo de campanha jornalística cujo propósito é caracterizá-lo como
inimigo do agrupamento hegemônico. Essa exposição midiática se
caracteriza como justiçamento. A outra face desse justiçamento ocorre,
no sistema de justiça, com a transformação do processo em pena, isto é, a
pena a que o cidadão é submetido é justamente responder a um processo
judicial, não importando se ele é culpado ou inocente. Afligido pelas
peculiaridades burocráticas, pela linguagem própria e pela demora
inerente ao processo judicial, o castigo do cidadão é responder ao
processo judicial.
Tendo essa advertência
como pano de fundo, cumpre-nos rapidamente analisar o papel conferido
pela Constituição ao STF. Fundamentalmente possui o STF três tarefas:
(I) funcionar com última instância recursal do judiciário brasileiro;
(II) exercer jurisdição nas ações que lá se originam; e (III) exercer o
papel de Tribunal Constitucional.
Ora, resta saber se essa
atividade jurisdicional conferida ao STF pela Constituição se coaduna
com o protagonismo pretendido e como tal protagonismo será visto pelas
demais instituições republicanas e pela sociedade brasileira.
É certo que o prestígio
do Judiciário decorre da posição equidistante adotada ante os conflitos
existentes na sociedade. Conflitos não apenas jurídicos. Qual a razão de
os poderes políticos deferirem a um rival normativo o poder de arbitrar
suas demandas? A sociedade conferirá a um membro das disputas
partidárias a tarefa de arbitrá-las?
Convém recordar que a
aferição dos aspectos constitucionais e legais da legislação é realizada
tanto no Legislativo (pelas Comissões de Constituição e Justiça) quanto
pelo Executivo. Assim, a expertise jurídica não é privativa do
Judiciário. A constituição de quadro de pessoal com alta sofisticação
jurídica é antes uma questão de remuneração do que vocacional. Assim,
creio que a imparcialidade que se espera do Judiciário é a razão de seu
prestígio e não o desbordamento de suas históricas atribuições.
No entanto, é cada vez
mais frequente que ministros do STF emitam opiniões sobre os assuntos
mais diversos da vida política nacional. Não raro essas opiniões
expressam críticas a poderes, censuras a instituições ou contêm até
mesmo prognósticos políticos. Essas condutas não são ortodoxas,
contrariam não apenas a tradição judiciária segundo a qual ao juiz
compete uma atuação reservada aos feitos judiciais sob seus cuidados. É o
que comumente se chama de liturgia do cargo. A fim de se manter
equidistante das disputas, o magistrado não disputa a hegemonia
política, não cria narrativas para que, assim, possa desfrutar do
prestígio que a função de magistrado angariou.
Na medida em que
magistrados angariam simpatia popular, imiscuindo-se em assuntos
tradicionalmente reservados aos partidos, à sociedade organizada, aos
poderes políticos e à construção das narrativas políticas, tornam-se
atores políticos como os demais, não podendo mais desfrutar de papel de
árbitros das disputas. Em um mundo em que não há mais oráculos a
consultar nem tradições donde se obter normas, talvez seja conveniente
reservar a alguma instituição a tarefa do distanciamento institucional
dos negócios públicos. Espera-se que o Judiciário preserve para si tal
incumbência. Caso contrário, outra surgirá.
Luiz Moreira, Doutor em Direito pela UFMG, ex-Conselheiro Nacional do Ministério Público, é professor de Direito Constitucional.
Brasil 247
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