Roberto Requião - A autofagia da esquerda e o ajuste fiscal

Senador Roberto Requião

Nas últimas semanas, conversei diariamente, e por mais de uma vez ao dia, com economistas brasileiros. E deles, indistintamente, colhi previsões funestas, caso o ajuste-Levy seja aprovado também pelo Senado. O ajuste, por ser intrinsecamente recessivo, vai agravar ainda mais uma economia já estagnada.
Os economistas estimam que o ajuste-Levy vai nos empurrar para uma contração de, no mínimo, dois por cento, em função dos cortes nos gastos públicos e no crédito ao setor privado, sem que se mencionem os aumentos de impostos sobre a produção.
Somadas a isso, teremos as consequências danosas da Operação Lava Jato, que devem provocar uma contração adicional de três por cento, já que a economia do petróleo representa de 13 a 17 por cento do PIB brasileiro. Assim, estamos sob o risco de uma contração de cinco por cento, um índice sem precedentes em nossa história. O governo e o congresso estão mesmo dispostos e preparados para aceitar essa responsabilidade? A responsabilidade por um crescimento negativo de cinco por cento? Pela elevação do desemprego a taxas de 15 por cento?
Pelos cortes em saúde e educação que vão diminuir a qualidade desses serviços já sofríveis? Pelo cancelamento de direitos trabalhistas conquistados a duras e ferrenhas lutas?

Ninguém discorda que já estamos mergulhados na crise, em recessão. Esse último Dia das Mães, por exemplo, foi o pior Dia das Mães desde 2003. Pois bem, em uma situação econômica de tal gravidade, o único ponto de equilíbrio que nos oferecem é o da contração da produção e do emprego. O ponto de equilíbrio da depressão.
O que nós precisamos é de um Programa de Crescimento, de um Projeto de Brasil Nação, e não de um programa da estabilização da crise. E por que essa obsessão com o tal ajuste? Para, supostamente, impedir que as agências de risco desclassifiquem o Brasil. Precisamos dessa classificação?
Um pequeno arranjo com a China, muito inferior ao que poderia ter sido se fôssemos mais sábios, garantiu-nos 53 bilhões de dólares de crédito só numa tacada. Sem pedir licença a agência de risco alguma.
Podemos certamente aceitar a necessidade, como toda economia tem em todos os tempos, de aumentar temporariamente a dívida pública, para depois diminuí-la, quando a economia se recuperar. Aumentar a dívida pública?
Os monetaristas, os discípulos de Friedman, os neoliberais como Joaquim Levy fogem dessa variável como o diabo da cruz. Mesmo que países como os Estados Unidos usem e até abusem do expediente. Melhorar marginalmente um indicador contábil de endividamento, que já é bom, vale o sofrimento de milhões de famílias?
Pior: a recessão e o aumento de juros não vão melhorar esse indicador. A experiência histórica de países como a Grécia, e a mera lógica, nos mostra que recessão e aumento de juros não melhoram a relação dívida sobre PIB.
Agora, se o objetivo desse plano for o de desmoralizar governos de esquerda, para que nunca mais voltem a governar este país, o plano tem sentido.
Nesses dias, o país debate intensamente a precarização do trabalho, com a aprovação na Câmara do projeto de terceirização. No entanto, está em curso uma precarização muito mais perigosa, letal: a precarização da democracia.
Aprovando este ajuste, tanto o Legislativo quanto o Executivo renunciam sua prerrogativas, transferem ao mercado as suas funções e realizam o ideal neoliberal do Estado mínimo. Transferimos ao mercado a gestão da economia, dos gastos públicos, das relações políticas e econômicas internacionais, da política de infraestrutura, do planejamento. Sobrará a tarefa da segurança pública. E olhe lá.... A nossa já precária democracia tornar-se-á mais débil, vacilante e errática do que é hoje.
Mirem na Europa. Vejam o que o mercado fez com as democracias, não apenas de Portugal, Espanha, Itália e Grécia, mas sim também as da França, Alemanha e Inglaterra. A precarização da democracia, provocada pela supremacia do mercado levará a civilização a sua maior crise de toda a história.
O povo brasileiro e o Congresso devem dizer não ao ajuste-Levy, não à recessão e ao desemprego, não prevalência dos interesses do mercado sobre a ventura de vida dos brasileiros, não à precarização do trabalho, não à precarização da democracia.
Devemos dizer sim a um Programa para o Brasil. Face à incapacidade de muitos de seus contemporâneos de acreditar em Deus, no mundo já liberto das trevas medievais, Blaise Pascal propunha uma aposta aos céticos, assim:
"Caso você acredite em Deus, e Deus realmente existir, você terá ganhos infinitos. Caso você acredite em Deus, mas Deus não existir, a sua perda será finita, extingue-se com a sua morte. Caso você não acredite em Deus, e Deus realmente inexistir, seu ganho também será finito, perecível. No entanto, se você não acredita em Deus, mas Deus existir, você terá uma perda infinita e padecerá eternamente no fogo do inferno."
Logo, aconselhava Pascal, melhor acreditar. Se ele não existir, você perderá apenas o tempo de uma vida; mas se Deus existir a pena pela descrença será eterna.
Vejo hoje o Congresso com o mesmo comportamento oscilante dos apostadores de Pascal. A base não está convencida que o ajuste de Levy vá dar certo, e nem que os apertos sejam a antessala do paraíso. Mas titubeia, pensando: vai dar errado? Vai dar certo? Devo acreditar? Devo descrer? Se voto contra e der certo? Se voto a favor e der errado? Enfim, nem mesmo a base tem certeza de que existe vida depois do plano-Levy.
De minha parte, reafirmo a absoluta incredulidade nos tais ajustes "levianos". Aposto que vai dar errado e não temo, por ser assim radicalmente ímpio, ver a minha língua queimada. Eu não entendo. Não me é compreensível que esses ajustes, preparados com ingredientes altamente tóxicos, só porque patrocinados por um governo hipoteticamente de esquerda, possam perder o potencial maligno, peçonhento, destruidor.
Quando, em que circunstâncias, cortes em saúde e educação, arrocho salarial, alta de juros, desemprego, corte de crédito, aumento de impostos, agiotagem, cancelamento de direitos trabalhistas, quando essa fieira de insanidades produziu efeitos positivos para o país e para o seu povo?
Estarreço-me ver companheiros de uma vida toda de militância antiliberal exporem-se na defesa de tudo aquilo que abominamos e combatemos. De outra banda, em um jogo de sinais trocados, de simulação e mascaramento temos a oposição a agitar a bandeira da defesa dos trabalhadores.
Pobres trabalhadores, duplamente desamparados, duplamente abandonados.
Roberto Requião

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