Política de transmissões da Globo mata o futebol

Artigo sobre o atual desequilíbrio na divisão de cotas de TV defende que o principal critério a ser avaliado deveria ser a medição de audiência; "E se estas foram tão próximas em 2013 e 2014, justamente na TV aberta, então como justificar que um clube vá receber R$ 170 milhões anuais a partir de 2016 enquanto outros grandes ficarão com R$ 60 milhões?", pergunta Danilo Soares Félix, em texto para o 247; ele lembra também que "há anos a Rede Globo é quem determina os dias e horários dos jogos a cada rodada, para adequação de sua grade de transmissão", e que alguns clubes acabam sendo privilegiados nos horários nobres do futebol; "Aqui no Brasil ainda temos agravantes perigosos: a verba da TV é a principal fonte de renda dos clubes e a Globo praticamente não possui concorrentes à altura", diz

Com a implosão do Clube dos 13, capitaneada por Andrés Sanchez, na época presidente do Corinthians, os grandes clubes do Brasil se viram diante de negociações particulares por cotas de TV com a Rede Globo, detentora dos direitos de transmissão.
Se for avaliada a divisão do bolo da TV nos contratos assinados de 2011 até 2015, já percebe-se o distanciamento de Flamengo e Corinthians em relação aos demais clubes, entretanto, será no período de 2016 a 2018, também com contratos já assinados, que a diferença vai se acentuar de forma mais agressiva.
Por exemplo, a partir de 2016, grandes clubes que têm sido protagonistas no futebol nacional, tais como Grêmio, Internacional, Atlético-MG, Cruzeiro e Fluminense, receberão aproximadamente R$ 60 milhões anuais, enquanto Flamengo e Corinthians receberão por volta de R$ 170 milhões. Uma diferença financeira impossível de equilibrar, mesmo se todas as demais receitas dos clubes prejudicados subirem expressivamente, incluindo aí arrecadações com sócios, patrocinadores, bilheterias e negociações de direitos econômicos de atletas.
Infelizmente, o fim da negociação em bloco fragilizou a posição dos grandes clubes que possuem torcida mais concentrada em algumas regiões, bem como fortaleceu o poder de barganha daqueles grandes clubes que possuem mais torcedores nas pesquisas de opinião, embora tal diferença de tamanho não se traduza com clareza nas métricas de audiência. Senão vejamos alguns exemplos:

O blog Teoria dos Jogos divulgou recentemente os números da audiência em TV aberta no ano de 2014, com quadros comparativos entre Flamengo, Fluminense e Botafogo, clubes que disputavam a Série A.


Concentremos nos números do último Campeonato Brasileiro, que são os dados mais interessantes do levantamento de audiência. Diante de medições tão parelhas na TV aberta, como alguém pode tentar justificar cotas de TV quase 3 vezes superiores para o Flamengo em relação aos seus rivais cariocas, a partir de 2016?
Em 2013, o mesmo blog, hoje independente, ainda fazia parte do portal Globoesporte. Naquela oportunidade, forneceu um relatório ainda mais detalhado das audiências por jogo no Campeonato Brasileiro daquele ano. As medições também foram bastante parecidas.
Ora, se estamos falando de distribuição de cotas de TV, o principal critério a ser avaliado deveria ser a medição de audiência. E se estas foram tão próximas em 2013 e 2014, justamente na TV aberta, então como justificar que um clube vá receber R$ 170 milhões anuais a partir de 2016 enquanto outros grandes ficarão com R$ 60 milhões?
Vale ainda lembrar que há anos a Rede Globo é quem determina os dias e horários dos jogos a cada rodada, para adequação de sua grade de transmissão. E é notório que Flamengo e Corinthians também têm sido privilegiados nos horários nobres do futebol, fato que atrai mais investimento e bilheteria para ambos em relação aos demais. Mais exposição gera mais receita, mais audiência e mais anunciantes, num ciclo vicioso que desequilibra completamente as forças.
Seria a vontade da Rede Globo criar dois gigantes brasileiros que possam competir internacionalmente, tornando o campeonato mais atrativo para ser vendido ao mercado internacional? Ou seria mero populismo? Os motivos não importam muito, mas não parece justo que a Rede Globo sozinha decida quem pode ser campeão e quem não pode. Quem vai ser grande e quem vai ser médio. Não é justo, principalmente porque não é isso que acontece nas Ligas mais bem sucedidas da Europa, como a inglesa e a alemã.
A Premier League, campeonato nacional mais bem sucedido do planeta, divide o dinheiro de TV em três fatias. A primeira é uma cota rateada igualmente entre os 20 clubes da primeira divisão. Em 2013/14, essa cota foi de € 65,5 milhões. A segunda cota é a chamada por lá de "mérito", que é paga de acordo com a posição do time na tabela. A cada posição, é pago cerca de € 1,5 milhão. Ou seja: o Cardiff, último colocado, ganhou € 1,5 milhão. O 19º ganhou pouco mais de € 3 milhões e assim por diante. O primeiro colocado, Manchester City, ganhou pouco mais € 30 milhões.
A terceira faixa é a que remunera por exibição na TV. A cada jogo transmitido, o time ganha algo próximo a € 942 mil. O time que teve mais jogos transmitidos foi o Liverpool, com 28, e ganhou € 27,5 milhões por sua audiência na TV. Os dois times que tiveram menos jogos transmitidos foram Cardiff e Fulham, oito vezes. Há uma garantia contratual que cada time ganhará o equivalente de, no mínimo de 10 jogos, transmitidos. Como esses dois times tiveram só oito jogos transmitidos, ganharam a cota de 10 jogos, € 10,8 milhões.
Aqui no Brasil ainda temos agravantes perigosos: a verba da TV ainda é a principal fonte de renda dos clubes, ao contrário do que ocorre na matriz de receitas dos grandes clubes da Europa. E a Rede Globo praticamente não possui concorrentes à altura no país.
Se o cenário de desigualdade de cotas não for reequilibrado, em breve haverá uma disparidade econômica que acabará com a competitividade do futebol brasileiro e impactará diretamente na formação de novos atletas, afinal, teremos menos instituições com capacidade para investir pesadamente na formação de talentos.
Além disso, um campeonato nacional disputado por 2 grandes favoritos e 18 coadjuvantes certamente diminuirá o interesse pelo mesmo no mercado interno, atrapalhando a formação de novos torcedores e consequentemente, afastando potenciais patrocinadores no médio prazo.
Hoje o negócio futebol já concorre com novos tipos de entretenimento que não existiam no passado, tais como games espetaculares, internet, vídeo "on demand", salas de cinema 3D e novos esportes interessantes para os jovens, como o UFC. Diante deste cenário, não parece lógico desestimular a competitividade do futebol nacional, talvez seu principal atrativo.
Na Espanha, onde o problema se tornou gravíssimo, o governo decidiu entrar na questão e proibir a negociação individual de cotas de TV, modelo que durante 20 anos permitiu gigantismo internacional a Real Madrid e Barcelona, mas relegou a meras zebras todos os demais grandes clubes do país, dentre eles os históricos Valencia e Atlético Madrid.
Infelizmente, lá na Península Ibérica o problema está sendo resolvido de forma reativa, tardia, quando o estrago já está feito e a diferença de tamanho entre as instituições esportivas se tornou gigantesca. A revisão ocorre principalmente porque a Liga espanhola se tornou frágil financeiramente em relação à Liga inglesa, que atrai bem mais espectadores pelo mundo.
Aqui no Brasil ainda dá tempo de evitar o problema, mas será preciso uma nova unidade por parte dos clubes prejudicados. Também é possível reverter a "espanholização" do futebol brasileiro com uma legislação específica para regular o setor e diminuir o poder soberano da Rede Globo, mas é preciso levar o debate ao grande público desde já.

por Danilo Soares Felix
Brasil 247

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