Mary Del Priore é historiadora, professora universitária e autora de obras como História das Mulheres no Brasil (ed. Contexto), vencedor dos prêmios Jabuti e Casa Grande e Senzala, e Histórias e Conversas de Mulher (ed. Planeta), em que acompanha avanços femininos desde o século 18.
Para a historiadora, as mulheres brasileiras do
último século conquistaram o direito de votar, tomar anticoncepcionais,
usar biquíni e a independência profissional. Mas ainda hoje são vítimas
de seu próprio machismo.Mas, na sociedade, acho que o machismo no Brasil se deve muito às mulheres. São elas as transmissoras dos piores preconceitos. Na vida pública, elas têm um comportamento liberal, competitivo e aparentemente tolerante. Mas em casa, na vida privada, muitas não gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da namorada, a culpa é da menina; e ela própria gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos os homens do quarteirão.
O que mais vemos, sobretudo nas classes menos educadas, é o machismo das nossas mulheres.
BBC Brasil - Mas muitas até querem que os maridos ajudem em casa, mas será que essas coisas do dia a dia acabam virando motivos de brigas justamente por conta do machismo arraigado? E também há mulheres estudadas, ambiciosas e fortes - mas também vaidosas, que ao mesmo tempo querem se sentir desejadas por um parceiro/a que as respeite. Isso é uma conquista delas, não?
Del Priore - Ambas as questões não podem ter respostas generalizantes. Mais e mais, há maridos interessados na gerência da vida privada e na educação dos filhos. Quantos homens não vemos empurrando carrinhos de bebê, fazendo cursos de preparação de parto junto com a futura mamãe ou no supermercado? Tudo depende do nível educacional de ambos os parceiros. Quanto mais informação e mais educação, mais transparente e igualitária é a relação.
Quanto às mulheres emancipadas, penso que preferem estar sós do que mal acompanhadas. Chega de querer "ter um homem só para chamar de seu". Elas estão mais seletivas e não desejam um parceiro que queira substituir a mãe por uma esposa.
BBC Brasil - Como a mulher mudou – e o que permanece igual – no último século?
Del Priore - Temos uma grande ruptura nos anos 60 e 70 no Brasil, que reproduz as rupturas internacionais, com a chegada da pílula anticoncepcional. As mulheres começaram a ocupar postos nos diversos níveis da sociedade, a ganhar liberdade sexual e financeira. Ela passa atuar como propulsora de grandes mudanças. Quebra-se o paradigma entre a mulher da casa e a mulher da rua.
(Mas) a mulher continua se vendo através do olhar do homem. Ela quer ser essa isca apetitosa e acaba reproduzindo alguns comportamentos das suas avós. Basta olhar algumas revistas femininas hoje. Salvo algumas transformações, a impressão é de que a gente está lendo as revistas da época das nossas avós.
A mulher não consegue se ver fora da órbita do homem, diferentemente de algumas mulheres europeias, que são muito emancipadas. O que ela quer é continuar sendo uma presa desejada.
A (antropóloga) Mirian Goldenberg diz que a mulher brasileira continua correndo atrás do casamento como uma forma de realização pessoal. No topo da agenda dela não está se realizar profissionalmente, fazer o que gosta, viajar, conhecer o mundo – está encontrar um par e botar uma aliança no dedo. Mesmo que o casamento dure uma semana.
Quais as amarras das mulheres atuais?
Del Priore - O machismo é uma das questões. Outra, que talvez explique a inatividade da mulher frente a esse padrão, é que, com a entrada num mercado de trabalho tão competitivo, com tantas crises econômicas e uma classe média achatada, a luta pela sobrevivência se impõe sobre qualquer outro projeto.
Essa falta de tempo para respirar, o fato de ter que bancar filhos ou netos, isso talvez não dê à mulher tempo para se conscientizar e se erguer acima do individualismo – outra tônica do nosso tempo – e pensar no coletivo.
BBC Brasil - Ao mesmo tempo em que a mulher avança no mercado de trabalho, algumas também têm perdido a vergonha de parar de trabalhar para cuidar dos filhos; ou resgatado, como hobbies ou profissão, antigas "tarefas de mulher", como tricô, cozinha, artes manuais. Desse ponto de vista, existe um poder maior de escolha das mulheres?
Del Priore- Sempre apostei que as mulheres não deveriam buscar ser "um homem de saias", mas apostar em sua diferença e singularidade. As marcas do gênero, segundo sociólogos, são a criatividade, a diplomacia, capacidade de dialogar, etc. O fato de que elas busquem se realizar resgatando o trabalho doméstico, manual ou artesanal é uma prova de que a singularidade feminina tem muito a oferecer.
A mulher pode, sim, realizar-se através do trabalho doméstico e não necessariamente no público. Desse ponto de vista elas só estariam dando continuidade a uma longa tradição, discreta e oculta, que é a independência adquirida por meio de atividades desenvolvidas no lar. Nossas avós, quando trabalhadoras domésticas, já conheceram essa situação. A tecnologia só nos ajuda a torná-lo mais eficiente.
BBC Brasil - Que papel a educação teve na mulher que você é hoje?
Del Priore - Tive uma trajetória peculiar. Resolvi fazer universidade (aos 28 anos) quando já era mãe de três filhos. A maturidade me ajudou muito a progredir. Tive a sorte de ter na PUC-RJ e na USP um ambiente muito receptivo, porque era um momento em que a universidade estava largando aquela camisa de força marxista e se abrindo para estudos de cultura e sociedade, que me interessavam.
BBC Brasil - Quais os principais desafios que você enfrenta como mulher?
Del Priore - Hoje o grande desafio, em qualquer idade, é o equilíbrio interior, estar bem consigo mesma. Quando começamos a envelhecer – o que é o meu caso, aos 61 anos –, é preciso olhar isso com coragem, ver isso como um investimento positivo. E ter tempo para a família, para as pessoas em volta da gente.
Quando era mais jovem, eu me preocupava muito com grandes projetos. Hoje me preocupo com o pequeno – acho que é por aí que você muda a realidade. É no dia a dia, na maneira como você trata as pessoas à sua volta, no respeito que você tem pelo seu bairro. Não temos condições de abraçar o mundo. Através do micro, a gente consegue aos poucos transformar o macro.
Paula Adamo Idoeta
Da BBC Brasil em São Paulo
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