Venda de vinícolas e vinhedos nobres para chineses fere brios nacionais dos franceses


Faz exatamente um ano, e foi um deus-nos-acuda na França. Um investidor estrangeiro comprou uma das mais tradicionais vinícolas da região de Borgonha, e — pior ainda para o orgulho nacional — o próprio castelo que dá nome ao precioso pedaço de terra que produz um dos melhores vinhos grands crus franceses: o Château Gevrey-Chambertin, magnífica fortaleza medieval do século XII que estava desde 1858 em mãos da mesma família, os Masson.

Os dois hectares da propriedade produziam apenas algo como 10 mil garrafas por ano do precioso, exclusivíssimo vinho e, diante do assédio do investidor, vitivinicultores locais tentaram manter a identidade francesa da propriedade — avaliada em 3,5 milhões de euros (10,5 milhões de reais) — fazendo sucessivas ofertas aos Masson que chegaram até os 5 milhões de euros (15 milhões de reais).
O investidor, porém, atropelou tudo comprando o Château Gevrey-Chambertin por 8 milhões de euros (24 milhões de reais).
Rótulo do Château Gevrey-Chambertin: exclusivíssimo

Os narizes franceses se torceram com o negócio especialmente pelo fato de o comprador ser Louis Ng Chi-sing, 60 anos, braço direito do “rei do jogo” da ex-colônia portuguesa de Macau, na China, Stanley Ho Hung-sun, e ele próprio um magnata.
Não se pode negar o interesse de Ng por vinhos — ao longo de 30 anos, ele amealhou uma espetacular enoteca de 250 mil garrafas.
Num episódio célebre, em 2005, pagou a viagem da França a Macau de uma equipe de especialistas só para que trocassem as rolhas de suas 50 caixas da safra de 1961 de Château Palmer, um grand cru classé da mitológica apellation d’origine controlée Margaux, da região vinícola de Bordeaux, no sudoeste da França.
Mas a associação de Ng com Stanley Ho, o “rei do jogo” — Macau, hoje, atrai mais gente do que Las Vegas — feriu os brios franceses. Ng é o CEO da SJM Holdings, uma empresa sediada em Honk Kong que possui 17 cassinos em Macau. A empresa-mãe, chamada (em português mesmo) Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, pertence a Stanley Ho e sua família, para quem Ng trabalha há 34 anos.
O magnata Ng Chi-sing, dono de coleção de 250 mil garrafas de vinho: novo dono de marca ancestral (Foto: Macau Jockey Club)
“Não estou aborrecido porque o investidor é um chinês”, apressou-se a esclarecer na época o presidente da associação vinícola da região de Gevrey-Chambertin, Jean-Michel Guillon, “mas porque não se deu prioridade aos vinhateiros locais. Pedimos ao governo francês que, a partir de agora, nos defenda e aprove uma legislação que conceda algum tipo prioridade aos que já trabalham, às vezes há séculos, nos diferentes domaines. Além do mais, o castelo representa a riqueza de nossa herança cultural, e deveria permanecer em mãos francesas”.
O governo francês, porém, não se mexeu nesse sentido — e nem é muito claro como seria possível legislar sobre oferta e procura, que é do que se trata. E, nesse sentido, a situação piorou muito: dezenas de domaines passaram a mãos chinesas de um ano para cá. Logo depois da aquisição de Ng, outro empresário chinês, Shi Yi, comprou vinhedos em Vosne-Romanée, também na Borgonha, e mudou-se para a região.
Stéphane Derenoucourt, enólogo e consultor, informou dias atrás que seus serviços vêm sendo solicitados por empresários da China no mínimo duas vezes por mês.
Apesar de ter clientes chineses, Derenoucourt é crítico para com esses investidores : “É um fenômeno inquietante, porque não há cultura do vinho na China”, diz ele. “O produto interessa porque traz prestígio. Além do mais, em geral os empresários chineses buscam lucros, mais do que excelência”.
O vitivinicultor Jean-Michel Guillon: "Nosso patrimônio se esvai" (Foto: Wine Ambassadeur)
Investidores norte-americanos e japoneses, entre outros, já vinham comprando vinhedos e vinícolas franceses quando a China entrou com estrépito na história, em 2011, comprando, via a gigante agroalimentar Cofco (sigla para China National Cereals, Oils and Foodstuffs Corporation), 20 hectares de vinhedos de Château de Viaud, na prestigiosa denominação Lalande de Pomerol, na região vinícola de Bordeaux.
O interesse da Cofco, um colosso com interesses também no mercado imobiliário e na indústria de hotéis, parece haver desatado uma espécie de corrida de investidores chineses na mesma direção, e na mesma região, uma vez a China é hoje o principal mercado mundial dos vinhos de Bordeaux. Só nessa, estima-se que uma venda de domaine por mês tenha um empresário chinês como comprador.
“Nosso patrimônio se esvai”, queixa-se Guillon, o presidente da associação vinícola da região de Gevrey-Chambertin. O partido de extrema direita Frente Nacional exigiu do governo medidas para permitir que proprietários franceses não precisem vender áreas ou vinícolas. O jornal Le Monde, ainda o mais influente da França, se perguntou: “Os chineses, viticultores na Borgonha — uma boa notícia?”
Os prestigiosos vinhedos Château de Viaud: um pedaço pertence a uma estatal da China
A hostilidade aos chineses apareceu de maneira crua em junho passado, no salão especializado Vinexpo, realizado em Bordeaux, quando seis estudantes chineses de enologia foram fisicamente agredidos, em episódio condenado como “xenófobo” e “intolerável” pelo ministro da Agricultura, Stéphane le Foll.
Há, porém, quem veja com olhos mais objetivos a presença chinesa no universo francês por excelência do vinho. “Os novos investidores gastaram dinheiro na melhoria das vinícolas que adquiriram”, diz Thomas Jullien, representante na Ásia do Conselho do Vinho de Bordeaux. “Eles estão modernizando instalações e equipamentos, e os produtores tradicionais em geral estão satisfeitos com eles”.

Ricardo Setti

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