Os trens da série S3000 comprados pelo governo de São
Paulo da fabricante alemã Siemens podem ser vistos atualmente na linha 7
do metrô da região metropolitana, ligando a Estação da Luz, na capital,
ao município de Francisco Morato.
Em 2002, a empresa alemã ganhou um contrato de
R$ 33 milhões para fazer a manutenção desses dez veículos. O negócio é
um dos vários que estão sendo investigados agora pelo Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Ministério Público e Polícia
Federal.O estopim do caso teriam sido denúncias feitas em maio pela própria Siemens ao Cade de que ela teria formado um cartel com outras multinacionais da França, Canadá, Espanha e Japão para manipular os preços de uma licitação pública, e pago propina a autoridades do governo de São Paulo em diferentes administrações do PSDB por mais de uma década.
As acusações – que não foram comprovadas e ainda estão sendo investigadas – não são inéditas contra a Siemens.
Em 2006, a companhia alemã foi o pivô de um dos maiores escândalos corporativos da história da Alemanha, em práticas bastante parecidas com as denúncias surgidas no Brasil. Uma investigação nos Estados Unidos revelou que entre 2001 e 2007 a companhia pagou US$ 1,4 bilhão em propinas a autoridades de diversos países, em troca de contratos públicos.
Esse valor é 42 vezes maior do que todo o contrato de manutenção dos trens S3000 em São Paulo. Segundo a Justiça americana, em dados compilados pela entidade anticorrupção Trace International, foram feito mais de 4 mil pagamentos ilegais a autoridades em mais de 20 países.
'Virada cultural'
Devido ao escândalo, a companhia amargou uma das maiores multas da história do mundo corporativo: total de US$ 1,6 bilhão, pagos nos Estados Unidos e na Alemanha."Foi um escândalo enorme que sacudiu o mundo dos negócios da Alemanha. Provavelmente o maior da década", afirma o diretor executivo da Transparência Internacional, Christian Humborg, à BBC Brasil.
A Transparência Internacional, entidade sediada em Berlim que monitora casos de corrupção em todo o mundo, afirma que o escândalo da Siemens mudou a mentalidade dos empresários alemães.
Até o final dos anos 1990, a lei alemã permitia que empresários pagassem propina a autoridades no exterior, para facilitar a aprovação de contratos. Nos anos 1980, a prática era tão comum, que as companhias podiam até mesmo descontar o valor das propinas do imposto de renda pago na Alemanha.
A reforma da legislação veio no final dos anos 1990. Na década seguinte, a Siemens passou a ser listada na bolsa de valores de Nova York, e teve que se submeter às leis americanas, como o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), que impede práticas como o pagamento de propinas a autoridades.
Apesar de todas as mudanças no mundo do direito, a Transparência Internacional afirma que a mentalidade dos empresários alemães não havia se adaptado. O escândalo Siemens e sua imensa repercussão, com a alta multa paga pelo grupo, foram uma "virada cultural".
"Havia uma relutância entre o empresariado alemão para mudar seu comportamento", diz Humborg.
"[O escândalo Siemens] foi um ponto de virada. Foi quando todos os empresários finalmente aprenderam que pagar propina no exterior é proibido."
"Isso pode parecer óbvio, mas a legislação só tinha sido alterada sete anos antes do escândalo e as empresas ainda não haviam adaptado seus procedimentos de forma adequada. O escândalo Siemens desencadeou esse processo."
A cúpula da Siemens caiu, incluindo o presidente Klaus Kleinfeld. Altos funcionários, como o ex-integrante do Conselho de Administração Johannes Feldmayer, receberam penas de prisão.
Desde então, as empresas mudaram de mentalidade. A Transparência cita duas inovações adotadas pela própria Siemens. Uma delas é no topo da estrutura, dando uma vaga no Conselho de Administração ao diretor da empresa responsável por observar as leis ("Chief Compliance Officer").
A outra foi uma recomendação do FCPA: a adoção de um programa de "whistleblowers" ("denunciantes"), que estimula funcionários da Siemens a acusarem escândalos dentro da empresa.
O programa pode ter ajudado a dar início às investigações sobre a Siemens no Brasil. O primeiro caso de desvio de dinheiro para o país começou a ser investigado na Alemanha, depois de denúncias feitas por um funcionário da Siemens à Justiça em Munique em março 2008.
Os delitos supostamente cometidos no Brasil são do mesmo período do escândalo internacional de propinas da Alemanha.
A promotoria pública de Munique disse à BBC Brasil que a promotora que recebeu as denúncias e fez as primeiras investigações – a hoje juíza Hildegard Bäumler-Hösl – não está autorizada a falar sobre o caso, já que não trabalha mais no escândalo.
Siemens
Em comunicado público assinado pelo presidente da empresa no Brasil, Paulo Stark, a Siemens diz que tem conhecimento das investigações do Cade, mas que "não pode se manifestar publicamente quanto ao teor das matérias que têm sido publicadas pelos diversos veículos de comunicação".A empresa alemã não confirma que tenha feito as denúncias ao Cade, em delação premiada.
"Em 2007 estabelecemos um sistema de compliance (integridade e obediência às leis) para detectar, remediar e prevenir práticas ilícitas que porventura, tenham sido executadas, estimuladas ou toleradas por colaboradores e chefias da Siemens em qualquer lugar do mundo."
Outros escândalos da Siemens
- Japão, 1914: A empresa alemã foi pega em um escândalo de pagamento de propinas a militares japoneses, em troca por contratos para construir navios de guerra.
- Nigéria, 1998: Uma força-tarefa de 200 policiais alemães investigou desvios de 200 milhões de euros para comprar contratos na Nigéria durante o regime de Sani Abacha (1993-1998)
- Argentina, 1998: A Siemens admitiu ter pago US$ 40 milhões em propinas a autoridades argentinas por um contrato para fornecer um sistema de carteiras de identidade. O governo argentino desistiu da licitação, mas a empresa alemã pagou propina para reabri-la.
- Grécia, 2004: A empresa pagou propina por diversos contratos das Olimpíadas de Atenas. Em 2012, em meio à crise da dívida pública grega, a Siemens concordou em pagar 90 milhões de euros de indenização ao governo grego, ao longo de cinco anos.
- Alemanha, 2006: Uma grande investigação sobre pagamento de propinas em todo o mundo levou a multas de US$ 1,4 bilhão nos EUA e Alemanha e à queda do presidente da empresa, Klaus Kleinfeld.
Daniel Gallas
Da BBC Brasil em Londres
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