Sob fogo cruzado


“Você nunca mais será feliz.” Essa foi uma das frases que a filha de Rubens* ouviu da mãe depois que o casamento chegou ao fim. Na época, a criança tinha pouco mais de 5 anos. O diálogo entre o ex-casal era praticamente inexistente.
“Qualquer conversa virava uma briga.” A opção dos pais foi a guarda compartilhada, dividindo igualmente os momentos da menina entre pai e mãe. “O problema é que, depois que a relação acabou, minha filha foi colocada contra mim. Até hoje ela acha que tenho um excesso de obrigações porque as deixei”, diz ele.
A situação descrita acima pode ser enquadrada como crime pela legislação brasileira. Trata-se da alienação parental, prática na qual o filho é afastado do pai ou da mãe por conta de conflitos pessoais entre os dois. É uma forma de vingança que usa a criança e o adolescente como arma para atingir o outro.
O tema entrou em destaque nos últimos meses por causa de uma das tramas da novela Salve Jorge, da Rede Globo. O personagem Celso (Caco Ciocler) leva a filha para o centro do conflito com a ex-mulher, Antonia (Letícia Spiller). “Sua mãe não gosta de você”, diz o personagem à filha com frequência. Para validar seu argumento, dá liberdade para a menina. Permite que ela coma doces antes do almoço e assista aos programas favoritos sem se preocupar com os estudos. Sem contar as chantagens emocionais. “Se ela for à festa da escola, eu não vou”, decretou Celso em um dos episódios.
Lei
A alienação parental fere um dos direitos fundamentais dos pais que é o acesso aos filhos. “O grande problema é que as pessoas confundem casamento com paternidade e maternidade. Um acaba, o outro, não”, explica a advogada Camila Bresolin, professora de Direito de Família na UniCuritiba.
Essa confusão faz com que os pais desvalorizem os méritos do ex-cônjuge, critiquem pequenas ações e até criem memórias falsas. Em casos extremos, inventam até histórias de abusos sexuais. “O objetivo é desmoralizar o outro. Isso deixa a criança confusa, pois esses discursos são as únicas verdades a que elas têm acesso”, observa.
Traumas
Rubens, o entrevistado que abriu esta reportagem, sente que a filha, hoje com 20 anos, carrega desconfiança para os relacionamentos. “Parece que a mãe dela injetou uma percepção de que os homens não prestam. Percebo isso nos discursos dela”, diz.
O fato de ser usada como moeda de troca e instrumento no conflito dos pais pode ser bastante traumático para uma criança ou adolescente. Com o tempo, os filhos podem ficar inseguros, ansiosos, ter dificuldades em relacionamentos e, até, síndrome do pânico.
A imagem do pai e da mãe precisa ser resguardada, pois é uma referência para os filhos. A psicóloga Fernanda Roche, coordenadora do espaço de desenvolvimento Criança em Foco, diz que pais podem minar a relação da criança com o cônjuge enquanto ainda estão no casamento. “A reclamação e o falar mal diário são um peso para crianças e adolescentes antes e depois da separação.”
Na novela Salve Jorge, por exemplo, Celso costumava expor Antonia para a filha antes mesmo do divórcio. A psicóloga Ruth Berenice Lass, que defendeu recentemente uma dissertação sobre alienação parental, afirma que esse tipo de comportamento alienador é patológico e precisa ser tratado com terapia.
Em casos mais graves, nos quais o casal não consegue nem ao menos conversar, como era o de Rubens, a solução seria um acompanhamento psicológico para toda a família. Tudo para minimizar o impacto que a separação certamente terá sobre os filhos.
*O nome foi trocado para preservar a identidade do personagem.
Bom exemplo
Brunno Covello/Gazeta do Povo

Mesmo separados, Ana Paula Martins e Hélcio Monteiro mantêm uma relação próxima por conta da filha Gabriela
Quando percebeu que os conflitos do casamento tinham ultrapassado seu limite, a advogada Ana Paula Martins decidiu sair de casa com a filha Gabriela, 12 anos, que na época tinha 2 anos. A ruptura deixou ressentimentos nela e no ex-marido, o também advogado Hélcio Monteiro. Mesmo assim, os dois decidiram que não levariam isso para a criança.
“Desde o primeiro momento, evitamos colocá-la no meio da separação. Nunca chegamos a brigar na frente dela”, diz Ana. Como a guarda ficou com a mãe, as negociações de horários, compromissos escolares e conflitos são discutidos quase que diariamente entre os dois desde o fim do casamento, há dez anos.
Hoje, a relação é boa o suficiente para que o ex-casal frequente festas familiares juntos com suas atuais companhias. Monteiro, que atua com direito de família em seu escritório de advocacia, diz que viu muitas situações envolvendo o tema para entender a importância de um casal se dar bem após a separação. “Não iria querer que minha filha passasse por esse tipo de conflito.”

Não caia nessa
O livro Ainda Somos uma Família (Editora Sextante, 256 pgs., R$ 24,90), da psicóloga americana Lisa René Reynolds, trata de alguns erros mais comuns que os pais cometem na hora da separação. Saiba quais são:

• Encerrar o casamento precipitadamente. Antes de expor os filhos à separação, os pais precisam ter certeza de que fizeram de tudo para salvar o casamento.
• Criticar o ex na frente dos filhos. Considerado como crime em casos extremos, os pais devem guardar suas opiniões para si. As crianças não podem ser tratadas como confidentes.
• Brigar na frente dos filhos. Mesmo crianças mais novas percebem que os pais estão em conflito. Isso as deixa estressadas e em sofrimento emocional.
• Fazer suposições equivocadas. Após o casamento, as pessoas tendem a imaginar que um determinado comportamento pode ser vingativo, mas, às vezes, pode ser próprio do ex-cônjuge. A conversa sempre resolve dramas desse tipo.
• Afastar-se completamente dos filhos. O afastamento absoluto só reforça a imagem de abandono que os filhos podem construir após a separação.
• Não medir as palavras. Tudo o que é dito pelos pais tem peso para crianças e adolescentes. Ameaças e intimidações agravam a sensibilidade dos filhos.
• Usar o filho como informante ou espião. A criança precisa circular nos ambientes do pai e da mãe, mas não pode ser um leva e traz de informação. No futuro, elas perceberão que foram usadas e isso pode provocar ressentimentos.
* * * * *
Divulgação/Rede Globo

Drama
Entre tramas de prostituição de brasileiras na Turquia, a novela Salve Jorge apresenta paralelamente uma discussão sobre alienação parental. O caso de Celso (Caco Ciocler), que coloca a filha Raissa (Kiria Malheiros) contra a ex-mulher Antonia (Letícia Spiller), despertou um intenso debate sobre o tema.
A escritora Martha Medeiros, em sua coluna no jornal gaúcho Zero Hora, disse que a questão é o tema mais difícil dentro do folhetim global. “[A manipulação do pai sobre a criança] é real, muitíssima comum e igualmente criminosa”, escreveu comparando a situação ao debate sobre tráfico de mulheres.
A psicóloga Ruth Roche diz que a novela tem o mérito de colocar em pauta um drama familiar antigo. “Esse tipo de situação existia há muito tempo. Antes mesmo de se darem conta disso na psicologia”. A ficção imita a realidade e, às vezes, abre os olhos para o que está na nossa frente.
12.318 é o número da lei, homologada em 26 de agosto de 2010, que prevê a alienação parental como crime. As penalidades vão da advertência à perda da guarda do filho.
351.153 casais pediram divórcio em 2011, um crescimento de 45,6% em comparação ao ano anterior. Os dados são do IBGE.
5,5% dos casais compartilham a guarda dos filhos após a separação, de acordo com o censo de 2010. Em 2000, o mesmo levantamento mostrava que 2,7% dos cônjuges divorciados dividiam a guarda da criança. 

 Rodolfo Stancki

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